quarta-feira

Cristãos na Terra Santa: Entre o Martelo e a Bigorna





Por Maria Senchukova 


Gavriil Nalbandian vive em Jerusalém. De dia ele pinta ícones em um pequeno apartamento, próximo ao Mosteiro dos Santos Arcanjos(NdT- igreja Armênia) na Cidade Velha de Jerusalém, a dois passos da Igreja do Santo Sepulcro. À noite ele volta para casa, onde vive com a sua esposa e filhos. Não há nada incomum nesse estilo de vida, mas entre os peregrinos e o clero local, Gavrill e sua família se tornaram uma espécie de celebridades. 

Há alguns anos, na véspera da Dormição de Theotokos, uma procissão passou do Santo Sepulcro para o túmulo de Theotokos. Entre a multidão de peregrinos, estava uma estudante da Academia Médica de Sechenov, Daria Kozlova, e, como dizem nos livros antigos, foi agradável a Deus que ela conhecesse um jovem com uma túnica de coral, cantando o sticheron para a festa em a procissão. Este era Gavriil. 
Agora eles têm dois filhos encantadores, nos quais se misturam sangue árabe, russo e armênio. Superficialmente, eles não se parecem com nenhum povo em específico e desde o nascimento ouviram várias línguas diferentes. 

O próprio Gavriil vem de uma família mista - seu pai é armênio e sua mãe é uma árabe ortodoxa. A combinação pode parecer incomum para nós, mas aqui não é incomum. A própria escolha de Gavriil parece excepcional: batizado na Igreja Apostólica Armênia, ele adotou conscientemente a Ortodoxia e faz parte da Igreja Ortodoxa de Jerusalém. 

O milagre do ícone 
Ele tem um nome armênio. Recentemente, ele possui nacionalidade israelense. Ora em grego. Com seus pais, ele fala árabe e com seus filhos e esposa, em russo. Ele pendura uma bandeira russa em seu carro e está pensando em se mudar para a Rússia. 

Por muitos anos, Gavriil – primeiramente solteiro e depois com sua esposa e filho mais velho - morou em sua oficina. Mas, viver com duas crianças em 15 metros quadrados, incluindo a cozinha e banheiro, já estava ficando apertado. Agora Gavriil só trabalha aqui, lidando com metal e pintando e restaurando ícones. 

A oficina cheira a madeira e tinta. Ao longo das paredes há ícones, e há retratos dos atuais patriarcas Theophilos de Jerusalém e Kyrill de Moscou, e dos patriarcas anteriores: Diodore de Jerusalém e Alexei de Moscou. 
Gavriil trabalha abaixo da face do Salvador. Eu me sento ao lado dele e assisto. 

- É mesmo tão bem preservado? Ele mostra um ícone de Santos Cosme e Damião que está rachado com a idade. 
Concordo, em aprovação - a melhor parte do meu conhecimento de arte não é suficiente. 
O iconógrafo sorri maliciosamente e conta seu segredo: 
- Na verdade, é uma falsificação. Um pastiche. Só o tabuleiro é antigo. Eu mesmo pintei. 
- Você mesmo faz seus materiais de trabalho? 
--Não. Eu encomendo as tintas na Grécia e na Rússia. Eu conheço o método para fazê-las. Infelizmente, não há tempo para fazer tinturas eu mesmo. Eu compro as pranchas, mas eu mesmo as preparo. O carvalho é o melhor de todos, mas o carvalho é caro. Agora pinto em nogueira. 

- Onde você aprendeu iconografia? 
- Primeiro com meu pai, a partir dos 11 anos, por volta de 1986. Em 1997, fui enviado pelo Patriarcado de Jerusalém para estudar em Athos e depois em Thessaloniki. Depois disso, quando me casei, estudei por um ano em Moscou, na Universidade São Tikhon. 

- Você aprendeu russo lá? 
- Comecei a estudar russo ainda mais cedo, em Belém, em cursos anuais de russo. Depois de estudar por dois meses, conheci a gramática e a escrita, mas a prática não era suficiente. Mas, então me casei com Daria e a prática foi surgindo. 

- Você costuma trabalhar por encomenda, ou pelo chamado do coração? 
- Por encomenda, mas também pelo chamado do coração. Isto também é um ícone. 

- Quem são seus principais clientes? 
Todos os tipos de pessoas. Eu trabalho em igrejas e mosteiros. Por exemplo, pintei a Igreja de São Gregório em Ramla e os ícones são meus. Eu trabalhei na ordem do antigo hegumeno da Tumba de Theotokos. 
O embaixador russo (muitas vezes nos comunicamos) encomendou quatro ícones: para ele, Medvedev, Lavrov e, ao que parece, Putin. 
Às vezes pinto para presentear. Há alguns anos pintei um ícone de São Alexei da Rússia, especialmente para o patriarca Alexei. Patriarca Kyrill está vindo em uma visita oficial. Se for possível, tentarei pintar algo para ele. 

                                               O caminho para a ortodoxia 
- Em que fé você foi criado? 
- Minha mãe levaria meus irmãos e eu para a Igreja Ortodoxa, mas eu fui batizado na Igreja Armênia, porque meu pai pertence a eles e a casa dos meus pais está localizada próxima a um mosteiro armênio. Assume-se aqui que alguém batiza e cria um filho na confissão do pai. 
Um casamento misto aqui é algo comum. Quase ninguém entende diferenças teológicas e aquelas pessoas raras que entendem não pensam nisso. Meu pai, por exemplo, é muito sério sobre a fé e sobre a teologia dogmática ... mas ele tenta esquecer isso. 

- Por que você decidiu ir até os gregos? 
- Eu lia os Santos Padres e reflitia. Eu queria me tornar um monge e queria entrar na Lavra de São Savvas. Mas isso não aconteceu (novamente Gavriil sorri amplamente) desde que me casei. 
Mas esse momento foi decisivo. Eu vacilei por um longo tempo. Eu lia os santos padres de novo e de novo. Eu ainda não tinha confiança. Então comecei a orar a Deus: "Se a verdade está na Ortodoxia, dê-me um sinal para que eu tenha confiança em mim mesmo de que não estou enganado". Em 1992, eu estava com amigos em Ramallah. Lá, eles me disseram que havia um ícone de Theotokos que vertia mirra. Fui venerá-lo e vi que era um ícone feito por mim. Eu entendi que esse era o sinal de Deus. 
Meu pai também pinta ícones. Ele também me ensinou. (Na verdade, os armênios são iconoclastas, mas há uma forte influência grega). Ele é uma pessoa muito crente. Ele ora muito, mas ele não tem um ícone milagroso. É porque ele é um herege (no entendimento básico e bíblico do termo), mas eu não sou. 

- Como o seu pai reagiu à sua decisão de mudar as confissões? 
- Por muito tempo ele se ressentiu disso. Até agora ele me considera um traidor. Ele diz que entender a teologia não é nosso assunto. O importante é acreditar que Cristo veio para nos salvar e o resto não é importante. 

- Entre os Ortodoxos existe também uma teologia tão ingênua? 
De maneiras diferentes. Os gregos, a maioria dos quais são clérigos, mais ou menos instruídos, são bem versados em teologia. 
Quanto aos árabes, posso dar um exemplo. Muitas crianças árabes Ortodoxas frequentam escolas católicas. Lá eles têm que ir à igreja católica ou então há grandes conflitos. Teologia não é nada para ninguém. Em um dia eles podem ir para a igreja católica, no outro na Ortodoxa. Eles acham que é necessário fazer isso - você recebe mais bênçãos. 

- Como os gregos te aceitaram? 
--Muito bem. Eles me ensinaram a língua grega e a música bizantina. Eu fiz o que queria fazer. Eu tive um excelente relacionamento com o antigo patriarca Diodore. O ex-patriarca Irineu me ajudou muito - foi através dele que obtive esta oficina. 


Entre Israel e a Palestina 
- Você fala várias línguas fluentemente: árabe, armênio, grego, hebraico ... 
- Não, hebraico não fluentemente. Eu estudei hebraico, a fim de obter a cidadania israelense. Era necessário para mim viajar facilmente. Depois fomos para a Rússia e esqueci muito da língua. Mas, em geral, eu falo todas muito bem. 

-Diga-me, como os cidadãos palestinos viajam? Eles podem sair através de Israel ... 
-  Eles viajam pela Jordânia - não há fronteiras entre a Palestina e a Jordânia. Antes, havia um aeroporto em Gaza, mas eles o bombardearam há muito tempo. 

- Os árabes que moram em Israel, como sua mãe, têm cidadania? Ela não quer viver na Palestina, no seu país? 
- É tudo a mesma coisa para os que são como a minha mãe. Ela nasceu em Beit Sahour e se casou em Jerusalém. Ela não pensa em política. Todos os membros de sua família moram na Palestina e ela pode visitá-los - ela tem um passaporte jordaniano. 
Os palestinos estão em pior situação. Alguns deles têm uma permissão de entrada em Israel, três ou quatro vezes por ano, para as férias. Há pessoas que moram em Belém, mas não entram em Jerusalém há vinte anos, apesar de estar a quinze minutos de distância. 
Antes era mais fácil. Se houvesse um casamento entre um cidadão israelense e um palestino, o palestino recebeu uma autorização de residência para Israel. Agora isso não é possível. 


Cristãos entre o martelo e a bigorna 

- Como estão as relações entre cristãos e muçulmanos na Palestina? 
--Muito tenso. Os muçulmanos nos consideram pagãos. Eu não quero generalizar - alugamos uma casa em um bairro árabe e nossos vizinhos são pessoas maravilhosas, nós nos visitamos e temos um relacionamento muito caloroso. Mas se houver um governo islâmico, não poderemos viver aqui. 

-Mas Israel protege os cristãos? 
- Até um ponto. Você sabe, é assim que os gatos brincam com ratos. Se existisse Israel sem a Palestina, seria o fim para nós. Nós não somos necessários para eles. Aqui eles vão construir um estado puramente europeu. Se houver uma Palestina Islâmica sem Israel, isso também será o fim para nós. Eles apenas nos destruirão. 

- Mas há muitos exemplos de coexistência. Em Hebron, por exemplo, há uma população muçulmana, todas as mulheres são veladas, mas é calma lá. 
- Em Hebron há muitos muçulmanos de mentalidade radical. Simplesmente não há cristãos lá. É por isso que é calmo. Há apenas um mosteiro russo e os moradores acham que os russos estão lá apenas temporariamente. 
O mais ofensivo é que ninguém está preocupado com os problemas dos cristãos. As pessoas sabem o que está acontecendo em Gaza? Algumas vezes eles queimaram igrejas e mataram cristãos. Eles proíbem as mulheres árabes Ortodoxas de sair com as cabeças descobertas. 
Existe uma livraria cristã em Gaza. Eles foram até o seu dono e disseram: “Ou você fecha esta loja ou nós a matamos.” Ele respondeu: “Não, eu não a fecharei. Somos cristãos e vivemos aqui, como você. ”...Eles cortaram a cabeça dele, ali mesmo, no local. Alguma das mídias falou sobre isso? 
Mesmo em Belém (!) Você não pode comer e beber em público durante o Ramadã - eles vão bater em você por isso. 
Ao lado de Belém está o Mosteiro de São Teodósio. O abade foi espancado várias vezes e eles tentaram expulsá-lo desses lugares. Ele permanece lá. Se houvesse alguém para intervir! A Autoridade Palestina não toma nenhuma ação. Entenda como quiser. 
Quando havia hostilidades entre Israel e a Palestina, eles lutavam assim: eles iriam para casas cristãs e de lá eles se escondiam nos bairros judeus. É claro que os soldados israelenses reagiriam bombardeando os lares cristãos. Eles, israelenses, também não se importam com os cristãos. 
Do lado judaico, o tratamento não é melhor. 
Quando acabei de conhecer Daria, fomos a um mosteiro romeno. Para chegar lá, você tem que passar por um bairro judeu ortodoxo. Quando uma criança nos viu lá, ele notou a cruz de Daria e começou a atirar pedras em nós. Eu mesmo não pude fazer nada. 
Todo mundo já ouviu falar sobre os assassinatos do arquimandrita Philoumenos e da Matushka Anastasia. 
Os cristãos aqui não são uma força política. Por esse motivo, nenhuma mídia relata sobre nossos problemas. Ninguém está interessado em nós. Aqui há fanáticos religiosos de todos os tipos, e nós estamos entre eles, é como estar entre um martelo e uma bigorna. 



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