Um estudo da "Homilia 10, sobre Romanos" de Crisóstomo e sua interpretação em Contra Julianum por Agostinho
por Pe. Panayiotis Papageorgiou, Ph.D.
Apresentado na Décima Primeira Conferência Internacional de Estudos Patrísticos de Oxford
Introdução
Um detalhe, que para alguns pode parecer menor, sobre o significado do “pecado do primeiro homem” e suas consequências, separou as tradições teológicas Orientais e Ocidentais, desde a época de Santo Agostinho. A maioria dos Padres Orientais entendeu que a transgressão de Adão causou a queda da humanidade, a colocando longe da graça de Deus, introduzindo a morte, dor, medo e sofrimento em nossas vidas, e também a inserção dos defeitos humanos em nossa natureza. O entendimento de Agostinho, por outro lado, era de que todos os itens acima são consequências do fato de que, o pecado de Adão e sua culpa são transmitidos, ou propagados, através do ato de procriação e são encontrados em todas as pessoas nascidas. Por isso, o pecado de Adão corrompe toda a humanidade, inclusive as crianças, que não têm pecados próprios. Portanto, todos os seres humanos são condenados por causa do pecado de Adão (pecado original), que eles trazem consigo e pelo qual eles se tornam responsáveis, a menos que sejam batizados. Embora, em seu trabalho "Contra Julianum Pelagianum" [4] ele tenha examinado algumas das obras de vários Padres, Orientais e Ocidentais, ele ainda chegou à conclusão de que todos concordavam com ele. Assim, Agostinho, com seu entendimento de que “a natureza humana não tem poder intrínseco e inalienável para realizar o bem salvífico” e com sua doutrina do “pecado original”, “começou a elaborar uma antropologia radicalmente nova”.
A proposta deste estudo é focar na compreensão de Crisóstomo sobre pecado de Adão e suas consequências para a humanidade, especialmente quando ele as expressa em sua Homilia 10, aos Romanos, onde ele discute o Capítulo 5 da Epístola aos Romanos. Compararei então as descobertas com a interpretação de Agostinho da mesma Homilia e dos outros textos de Crisóstomo, que ele citou em seu tratado contra Juliano de Eclanum.
I. terminologia de Crisóstomo: O pecado de Adão e seus efeitos diante da Lei Mosaica
Em todos os textos que foram examinados para os propósitos deste estudo, Crisóstomo nunca usa o termo “pecado original”. Os termos usados para o pecado de Adão, todos os quais ocorrem na Homilia 10 sobre Romanos, são os seguintes: o pecado do homem, a desobediência do homem, a transgressão do homem, a transgressão, a transgressão de Adão, o pecado da desobediência de Adão, e o pecado que ele [Adão] introduziu. A questão que surge, especialmente por causa da expressão “o pecado que ele [Adão] introduziu”, é se ele pensava que o pecado, ou culpa, que resultou da transgressão de Adão foi algo que foi transmitido dos pais para crianças. A passagem mais problemática em relação a isso é encontrada em Homilia 10 sobre Romanos onde, após uma série de silogismos referentes à declaração de São Paulo “o pecado realmente estava no mundo antes que a lei fosse dada, mas o pecado não é contado onde não há lei ”(Rm 5:13), Crisóstomo conclui que o pecado que estava no mundo antes da lei de Moisés foi o da transgressão de Adão. A prova da existência do pecado é o fato de que todas as pessoas morreram, antes mesmo que a Lei de Moisés e o pecados dela resultante fossem introduzidos. Essa passagem foi citada por Agostinho, como veremos mais adiante, para mostrar que Crisóstomo acreditava na transmissão do pecado de Adão. A frase chave citada por Agostinho, “. . . não foi o pecado que vem da transgressão da Lei, mas o pecado que veio da desobediência de Adão que destruiu todas as coisas ” pode ser facilmente interpretada como dizendo que, o pecado da transgressão de Adão estava destruindo tudo antes que a Lei fosse dada através de Moisés. Depois de Moisés, o pecado da transgressão da Lei finalmente assumiu. A ideia de Crisóstomo é que o pecado tem que existir para que a morte exista. Para que o pecado exista, um mandamento é necessário para que a transgressão aconteça. Visto que antes da Lei de Moisés não havia outro mandamento, exceto o que Adão transgrediu, segue-se que o pecado da transgressão de Adão, com suas consequências, teve um efeito direto sobre seus descendentes; daí a conclusão de Crisóstomo, que o pecado da transgressão de Adão reinou antes que a Lei fosse dada. Este pecado, no entanto, perde o seu significado, depois do pecado da transgressão da lei de Moisés. A transgressão de Adão, de fato, nem parece ser tão grande como o fratricídio de Caim, que ocorreu antes mesmo da Lei ser dada. O que vemos aqui é que, embora não houvesse Lei para Caim, sua ação era considerada pecado e até maior do que a de Adão.
Na mente de Crisóstomo, o pensamento de que o pecado de Adão reinou antes da Lei, não pode realmente significar que sua culpa recaia sobre todos. O que parece significar é que a condição das consequências de seu pecado caiu sobre todos, como veremos nas seções que seguem.
Há também aqui uma ideia chave que deve ser destacada: a prova para o fato de que o pecado existia antes da lei é que todos morreram. Portanto, o pecado e a morte estão intrinsecamente conectados na teologia de Crisóstomo. De fato, por causa do pecado de Adão, não apenas aqueles que pecaram, mas também aqueles que não pecaram, foram sujeitados pela morte. A morte dominou, em geral, por causa do pecado de Adão.
II. As consequências do pecado de Adão de acordo com Crisóstomo
Crisóstomo aqui segue Paulo e sua terminologia muito de perto; a primeira consequência da transgressão de Adão é a mortalidade e, em última instância, a morte. Mesmo aqueles que nunca comeram da árvore se tornaram mortais através dele. Mais adiante, usando as palavras de São Paulo (Rm 5:15), ele afirma: “Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, assim também pela transgressão de um, muitos morreram”.
Passagens similares de outras homilias indicam a mesma conexão intrínseca entre o pecado de Adão e a introdução da morte no mundo. Nas Homilias sobre Gênesis, lemos: “Depois da transgressão, a morte entrou”. “O fato de que ele se tornou mortal por causa da transgressão é óbvio, tanto pelo mandamento, como pelos eventos subsequentes”.
Mas as consequências da transgressão do primeiro casal são mais do que apenas a morte. O próximo é a vergonha. Então vem a perda de honra e autoridade, então o medo, e até as outras consequências: o corpo não só se tornou mortal, mas também pode sentir sofrimento. O homem agora tem muitas deficiências naturais e seu corpo tornou-se mais pesado e ingovernável. O homem agora tem experiência de uma infinidade de paixões que ele precisa exercer grande esforço para controlar.
A morte, no entanto, parece ser a consequência mais trágica da queda, então
Crisóstomo também levanta a questão: "Por que razão isso aconteceu?" isto é, para que razão Deus permitiu que a mortalidade vencesse a raça humana? Como São Paulo não fornece uma resposta, Crisóstomo oferece a sua própria:
- Não seremos prejudicados por esta morte e condenação, se vivermos uma vida sóbria, mas, nos beneficiaremos, apesar do fato de que tornamo-nos mortais e sujeitos à morte. A primeira razão para isso é o fato que não pecamos em um corpo que é imortal. A segunda é que nós temos inúmeros motivos para seguir um modo de vida religioso.
E continua a explicar no que este modo de vida religioso implica concluir:
- Será como se estivéssemos sob instrução em uma espécie de escola na
presente vida, onde aprendemos com doenças, tribulações, provações, pobreza, e outras coisas que parecem merecer nosso medo, para que possamos nos tornar adequado para receber as bênçãos do mundo vindouro--
Até mesmo o que Crisóstomo originalmente chama de "punição", ele finalmente mostra que é para o nosso benefício. Até mesmo a condenação à morte é para nosso próprio bem, ele aponta, pois é projetada para nos trazer de volta ao nosso amor original por Deus, nos santificar e nos tornar dignos das bênçãos do Reino.
III A transmissão do pecado de Adão para seus descendentes
A questão da transmissão do pecado, aparece indiretamente desde o início da Homilia 10 sobre Romanos. Crisóstomo pergunta: “O que significa, 'Por quem todos pecaram?'” E ele responde: “Adão tendo caído, mesmo aqueles que não comeram da árvore se tornaram mortais, os descendentes de Adão herdaram sua mortalidade." Não há ideia aqui de herança de seu pecado ou culpa. A questão, no entanto, surge novamente, mais abaixo, na Homilia 10, quando São João discute o verso de Romanos 5:19: “pela desobediência de um homem muitos foram feitos pecadores”. Crisóstomo reconhece a gravidade de tal declaração por parte de São Paulo e prossegue para investigar isso:
- Contudo, o que Paulo diz parece não envolver uma pequena questão. Mas se alguém prestar atenção cuidadosa, a questão é facilmente respondida. Qual é então a questão? É que ele diz que através da desobediência de um homem, muitos foram feitos pecadores. Pelo fato de que, quando Adão pecou e se tornou mortal, aqueles que eram seus descendentes também se tornaram mortais, não é improvável. Mas como seria lógico que, da desobediência de Adão, outro homem se tornasse um pecador? Para tal, outro homem não será encontrado como devendo uma penalidade por conta disso, a menos que ele se torne um pecador por vontade própria. --
Aqui, Crisóstomo, na verdade, retoma a questão da transmissão da culpa de uma forma direta e rejeita essa ideia como antinatural e injusta; tal responsabilidade não pode ser atribuída a quem não se tornou pecador por sua própria vontade. Como, então, podemos explicar a declaração de São Paulo “a transgressão de um homem levou à condenação de todos os homens?” Ele mesmo levanta a questão: “O que 'pecadores ' significam aqui?”, Pergunta ele. “Parece-me”, ele continua, “ser responsável pela punição e condenado à morte”.
Esta declaração final não esclarece completamente a questão, mas ainda podemos chegar à conclusão, a partir da discussão geral e de suas idéias até agora apresentadas, de que seria necessário que os responsáveis pela punição também fossem responsáveis pelas transgressões específicas que eles cometeram em suas próprias ações, embora a condenação à morte seja herdada por todos por causa da transgressão de Adão. Como já vimos acima, no entanto, mesmo a condenação à morte é vista por Crisóstomo como sendo para nosso benefício.
IV. Agostinho e o pecado de Adão; sua má interpretação de Crisóstomo
Em sua obra Contra Julianum, Agostinho tenta defender sua posição de que existe um "pecado original" que é "contraído pela propagação humana" e contamina toda a humanidade. Ele examina as obras dos pais ocidentais e orientais, e "descobre" que todos eles acreditam na mesma coisa que ele. Neste estudo, vamos apenas olhar para os textos que ele cita de Crisóstomo, a fim de determinar se a sua interpretação desses textos é correta.
O primeiro texto que Agostinho cita é aquele que Juliano também usou para combater a teologia de Agostinho: as Homilias de Crisóstomo aos Neófitos.
E esta é a interpretação de Agostinho em "Contra Julianum":
--- Ele disse que as crianças não têm pecados, querendo dizer por si mesmas ... portanto, João, comparando-as a adultos, cujos pecados pessoais são perdoados no Batismo, disse que eles não têm pecados - não como você(Juliano) o cita: " não se contaminam com o pecado " (non coinquinatos esse peccato), onde você quer entender que eles não são contaminados pelo pecado do primeiro homem (não eos peccato primi hominis inquinatos).
. . . Por que ele mesmo não acrescentou "os seus próprios?" Por que, penso eu, exceto que ele estava falando para Igreja católica e não acreditava que seria compreendido de qualquer outra forma, já que ninguém havia levantado tal questão, ele falou descuidadamente... desde que você ainda não estava disputando. -
É bastante óbvio nos textos, no entanto, que Juliano é quem leu Crisóstomo corretamente e não Agostinho.
Em seguida, Agostinho também cita a Carta a Olímpia para provar que Crisóstomo acredita que as crianças são “contaminadas pelo pecado do primeiro homem”: “Quando Adão pecou "o grande pecado" e condenou toda a raça humana em comum, ele pagou as penalidades em pesar.” E então, ele cita da Homilia sobre Lázaro:“ Cristo chorou porque o diabo fez mortal aqueles que poderiam ter sido imortais ”, e conclui:
Como você vai responder a isso? Se Adão, pelo seu grande pecado, condenou toda a raça humana em comum, pode um bebê nascer de outra forma que não seja condenado? . . . Quem dos mortais não é tocado (pertineat) por esta falta (culpam) e azar (casum), pelo qual o primeiro homem caiu da vida eterna. . . Se o diabo fez mortal todos os que poderiam ter sido imortais, por que mesmo os bebês morrem se eles não estão sujeitos ao pecado daquele primeiro homem?
Crisóstomo teria respondido a isso da seguinte forma:
"Sim, todos são condenados à morte por causa da transgressão de Adão. Sim, todos são tocados pelas consequências do pecado do primeiro homem, mas não precisam ser culpados do pecado de Adão para que isso aconteça. É uma condição natural que todos nós herdamos em virtude de nossa humanidade, uma humanidade transformada por causa da transgressão de Adão. As crianças 'non cinquinatos essepeccato e non eos peccato primo hominis inquinatos." Homília 28 sobre Mateus
Agostinho também se refere ao tratamento de São João ao Genesis 1:28, onde Deus sujeitou as feras ao homem. Ele aponta como o pecado de Adão mudou a condição do homem, fazendo-o temer as feras e ser prejudicado por elas como punição do primeiro pecado (poenam primi esse peccati). São João, porém, não diz aqui que o medo era uma punição para o primeiro pecado, mas sim que o homem perdeu sua autoridade sobre a natureza por causa da queda, por conta de sua desobediência, de sua ousadia(παρρησία) diante de Deus. Deus, lamentando pelo que o homem fez e cuidando dele, tomou a autoridade dele. A consequência disso foi a introdução do medo em sua vida. Agostinho, por outro lado, quer acreditar que o fato de que todos nós tememos é a prova de que todos nós herdamos o primeiro pecado:
Certamente, está claro que São João tem mostrado nesta discussão que, o pecado que entrou através de um homem, tornou-se comum a todos, já que o medo das bestas é comum a todos, e as feras de modo algum poupam até as crianças, que certamente, de acordo com o tratado de São João, elas não devem de modo algum prejudicar ou amedrontar, a menos que as crianças sejam mantidas pelos laços do antigo pecado (veteris illius peccati).
E a conclusão final de Agostinho dos textos acima é que Crisóstomo está "afirmando a propagação da condenação”(propagationem damnationis asseruit), embora Crisóstomo nunca usa tais termos ou ideias.
O próximo trecho que Agostinho cita de Crisóstomo é, novamente, da Homilia
aos Neófitos e aqui descobrimos uma nova ideia introduzida por Crisóstomo; o
conceito de "caligrafia paterna", escrita por Adão, que introduziu a dívida.
Esta dívida, no entanto, Crisóstomo explica, foi aumentada por nós através do nosso próprio pecado subsequente. Agostinho cita aqui o texto grego e traduz para o latim.
Ele então passa a dar a interpretação de que “a dívida daquele chirographum paternum já nos pertence” (jam illius chirographi paterni ad nos debitum pertinere), ou seja, nós compartilhamos a responsabilidade pelo pecado de Adão e também somos responsáveis pelos nossos próprios. Finalmente, Agostinho chega à Homilia de Crisóstomo sobre Romanos, onde, ironicamente, ele vê “a verdade da fé católica de Crisóstomo mais clara que a luz”. Citando Crisóstomo, ele traduz
como contaminavit, ou seja, “que se corrompeu”.
A palavra grega para "corrompido", no entanto, teria sido
,
ou
. A palavra usada aqui,
, vem de
ou
, que significa praga ou pestilência. Portanto,"
, significaria " o pecado que assola (ou se tornou uma peste sobre) todas as coisas " e não 'que contaminou todas as coisas'. Agostinho, no entanto, escolhe Contaminavit, ou porque esse era o termo usado na tradução que ele tinha em mãos, ou porque ele sinceramente acreditava que esse era o significado que Crisóstomo pretendia transmitir. Ele conhecia algo de grego, entretanto, é igualmente possível que a escolha da tradução tenha sido uma decisão sua a fim de adequar sua teologia à propagação do "pecado original", da qual ele não estava disposto a desistir tão facilmente.
A coisa mais interessante sobre o capítulo 27 de Agostinho, de seu Contra Julianum, é que ele cita extensivamente a Homilia 10 de Crisóstomo sobre Romanos, indicando assim que ele deve ter tido toda a Homilia à sua frente, mas perde as importantes passagens, onde Crisóstomo realmente se refere diretamente a questão da "propagação" do pecado de Adão e a herança de sua culpa pela posteridade. As passagens a que me refiro são duas. O primeiro é:
Mas o que ele quer dizer quando diz: "Na medida em que todos pecaram?" Depois que Adão caiu em pecado, mesmo aqueles que não tinham comido da árvore, tornaram-se mortais por causa dele.
Aqui, Crisóstomo afirma explicitamente que ele entende o trecho dede São Paulo: 
significando que "tudo se tornou mortal" por causa da queda de Adão. Crisóstomo, corretamente, entende que
significa "nisso" e não "em quem" (in quo), o que a tradução latina da Vulgata implicaria. Agostinho pula sobre essa passagem e continua sua explicação. A segunda passagem ocorre, em um ponto posterior, onde Crisóstomo levanta a questão sobre “Paulo está dizendo que através da desobediência de um, muitos se tornaram pecadores” e aponta para as duas possíveis interpretações do mesmo. A primeira, que não parece improvável, diz ele, é que por causa do pecado de Adão e sua introdução em um estado de mortalidade, todos os que vieram dele seriam iguais, ou seja, mortais. São Paulo nos dá ampla prova de que tal coisa é possível, explica ele. A segunda interpretação possível, que Crisóstomo vê, coincide com a posição que Agostinho defende: que, por causa da desobediência de Adão, outro poderia tornar-se pecador, isto é, que outra pessoa pode portar o pecado ou a culpa da transgressão de Adão. Crisóstomo considera essa noção ilógica e injusta, uma vez que essa outra pessoa não se tornou pecadora por sua própria vontade ou ação
, e a rejeita. As questões que surgem são: Agostinho leu essas duas passagens, ou não? Se ele as leu, por que ele as ignorou?
Discussão e conclusão
A investigação acima demonstra que São João Crisóstomo viu a transgressão de Adão como a causa de nossa condição atual, ou seja, a natureza humana decaída, onde todos estão ligados por fraquezas, vergonha, medo, sofrimento e muitos defeitos naturais, mas, acima de tudo, pela morte. Para Crisóstomo, fomos condenados a essa condição devido à transgressão de Adão, mas não somos diretamente responsáveis por seu pecado. Mesmo esta condenação foi dada por Deus não tanto como punição, mas sim por misericórdia, em sua presciência e providência, a fim de nos salvar do pecado e nos trazer de volta ao seu amor e santificação. Não só não perdemos isso, afirma Crisóstomo, mas de fato ganhamos. Esta condição tornou-se para nós um campo de treinamento para a virtude, para que possamos nos tornar capazes de receber os futuros dons de Deus. Crisóstomo, claramente rejeita a idéia de que somos responsáveis e somos punidos pelo pecado de Adão, e ressalta que somos apenas responsáveis e seremos punidos pelos pecados que nos comprometemos voluntariamente.
Com respeito ao batismo, Crisóstomo concorda com o batismo infantil porque, embora as crianças não tenham pecados, elas receberão através do Sacramento a santificação, justificação, filiação, herança e fraternidade com Cristo, tornando-se membros de Cristo e uma morada para o Espírito Santo. Ele não diz nada sobre o
perdão do pecado de Adão, que uma criança pode estar trazendo consigo. De fato, em nenhum lugar nos textos examinados, incluindo aqueles citados ou referidos por Agostinho, encontrei qualquer indicação, na mente de Crisóstomo, da existência da noção de propagação do 'primeiro pecado' através do ato de procriação.
É claro que Agostinho leu esses mesmos textos, mas ignorou completamente as passagens que explicaram claramente a posição de Crisóstomo sobre o assunto, provavelmente porque ele já estava convencido da exatidão de sua própria crença e sua principal preocupação era combater Juliano, em vez de apresentar a verdadeira crença de São João Crisóstomo.
É até possível que em sua própria mente, ele imaginou estar protegendo a memória de São João de uma possível associação com a heresia pelagiana (há indicações disso em seus comentários em Contra Julianum). Ao fazê-lo, no entanto, ele estabeleceu no Ocidente um ensinamento do "pecado original", não totalmente alinhado com a tradição Patrística (pelo menos do Oriente), tendo um efeito duradouro sobre a igreja ocidental, sendo aceito pela Igreja Católica e também pelos teólogos Protestantes. Como o professor Bonner aponta, há sérias dificuldades intelectuais com o ensinamento de Agostinho:
Não está claro por que justiça a humanidade pode compartilhar a culpa de Adão, quando ela existia apenas em potencial em seus lombos no tempo da Queda. Também é difícil ver por que os filhos dos batizados devem herdar uma culpa da qual seus pais foram purificados. Finalmente, argumentou-se que a condenação do Pelagianismo pelo Papa Zósimo, em sua Tractoria, não constituía um endosso completo dos cânones de Cartago de 418, que representam a doutrina de Agostinho em sua forma mais rigorosa.
Eu gostaria de dar um passo adiante e apontar para um importante desenvolvimento teológico moderno no Ocidente, que tem suas raízes na doutrina agostiniana do pecado original: o recente dogma doutrinário da "Imaculada Conceição" da Virgem Maria. Parece-me que foi principalmente a necessidade da teologia católica romana de purificar a Mãe de Deus da "culpa herdada" (de Agostinho), que levou à proclamação e ao estabelecimento final desse novo dogma. Se essa noção de transmissão de impureza e culpa de Adão a seus descendentes não fosse tão forte no Ocidente, não haveria necessidade de tal desenvolvimento teológico.


Nenhum comentário:
Postar um comentário