quarta-feira

O Diálogo Redentor entre o Criado e o Incriado na História - "O CAMINHO" (Uma Introdução à Fé Ortodoxa)







Segundo capítulo do livro "O CAMINHO" (Uma Introdução à Fé Ortodoxa), escrito pelo  Protopresbítero George MetallinosProfessor Emérito da Escola de Teologia da Universidade de Atenas 


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CAPÍTULO 2 
  
O DIÁLOGO REDENTOR ENTRE CRIADO E INCRIADO NA HISTÓRIA 

  


A história, de acordo com um certo ponto de vista, é a eterna “carruagem da realidade mundial”, que toma o homem desde primeiro momento de sua vida e o transporta para seu destino eterno. O homem, como pessoa, ou seja, um ser livre criado por Deus, deposita seus atos (RES GESTAE) na História e, ao mesmo tempo, auto-realiza de acordo com o propósito de sua existência. Do ponto de vista Cristão, no entanto, a história tem uma "mente". Não é apenas um fluxo arbitrário de eventos entrelaçados e ocorrências; oferece-se simultaneamente ao homem como possibilidade de afirmação do seu valor, para o cumprimento do seu destino. Ou seja, a história universal é composta pelas histórias pessoais de todos os homens, seus sucessos, ou fracassos, em realizar esse propósito comum de todo homem. 
  
theosis, por outro lado, como a única finalidade e propósito do homem dentro da História, pressupõe a presença e a ação, na realidade histórica, não apenas do homem, mas também de Deus. A História, cristãmente falando, é uma revelação contínua de Deus (Θεοφανία). “NATAL” - Deus nascido de uma mulher como Deus-homem, é manifestado (2 Timóteo 1:10) e confirmado na autorrealização do propósito da História, que nada mais é que a realização da união Theantrópica. Eternidade e Tempo, transcendência e materialidade, supra-historicidade e historicidade estão unidos na pessoa de Jesus Cristo, em uma união perfeita. Ao tornar-se encarnado, Deus se torna “o que Ele não era", por nós. “Aquele que nada pode conter está contido em carne”; “Ele, que está no seio do Pai, é visto no abraço de sua mãe”, confinando-se dentro dos limites finitos do que é histórico e humano. Este é o milagre de todos os séculos, “extraordinário” e “único” em toda a História. 
  
A aparição de Deus na História, possibilita o encontro entre Deus e o homem. E este encontro é realizado como um diálogo redentor entre O Criador e Sua Sua criatura, que leva à união, isto é, ao evento da salvação como a autorrealização do homem e o cumprimento do propósito da história. Este propósito do devir histórico é, cristãmente falando, dado por Deus, e emana do amor divino, que constitui o pressuposto singular para a existência do mundo e da História. 
  
1. “comunhão” dada por Deus 
  
No que diz respeito ao antigo pensamento grego, como um todo, nosso mundo é eterno. A criação do mundo e, na verdade, “do não-ser” (de absolutamente nada) é desconhecida para ele. O "Demiurgo" de Platão (no Timeu) usa matéria eterna preexistente; ele é meramente aquele que “provê ordem ao mundo” (diretor), mas não o seu ser. Consequentemente, para o pensamento grego, o universo existe eternamente. 
  
De acordo com Aristóteles, (Meta ta Physika VII, cap.7): “É impossível que algo venha a existir se já não existisse preexistente.” Somente a Sagrada Escritura fala da criação a partir do nada. O conceito de nada como Absoluto, isto é, não ligado ao Ser, é cristão, bíblico e patrístico. 
  
O mundo, de acordo com as Escrituras e a experiência em geral dos santos deificados (profetas, apóstolos, pais e mães), é “criação”, isto é, uma criatura. Foi Paulo quem pela primeira vez usou os termos “criação” e “criado” para todo o universo criado. Cristo é chamado de “primogênito de toda a Criação, pois Nele todas as coisas foram criadas, no céu e na terra”. (Colossenses 1: 15-16). Cristãmente falando, então, o universo pressupõe um princípio ontológico absoluto: ele não existe por si mesmo. 
  
Sabemos da revelação divina, ou seja, da manifestação de Deus por Si mesmo na História, que a criação, "visível e invisível", é a obra da vontade e do amor divinos. Isso significa que nosso mundo não teria existido se Deus não quisesse criá-lo. E somente esta consciência, que a Criação é um ato livre da vontade divina, orienta o ser criado eucaristicamente e doxologicamente para o seu Criador incriado. “Aceitar que a sua existência é uma dádiva, faz seu coração transbordar de gratidão em todo momento em que se torna consciente de sua existência” (João, Metropolita de Pérgamo). 
  
Isso acontece durante a Liturgia de São João Crisóstomo: “Damos graças a ti, ó Reiinvisível, que, por poder incomensurável, formou todas as coisas e, na multidão de tuas misericórdias, tirou todas as coisas da não-existência à existência….". Na Ortodoxia, esta consciência é a base para a transcendência ascética do EGO e, portanto, do individualismo e da fome de conquista. É também a base para a oferta voluntária do próprio ser para o benefício dos outros (auto-sacrifício). 

Com o ato da Criação, o Amor da Santíssima Trindade dá substância ao "você" criado. A comunhão eterna incriada das Personae da Santíssima Trindade traz à existência a comunhão criada das personae humanas, sendo como elas são, o cume de toda a Criação. Mas, ao contrário do mito do deísmo, que aceita Deus como Criador, mas fora da História (DEUS CREATOR, SED NON GUBERNATOR), o Deus incriado traz o homem criado à existência para comungar com Ele, em um relacionamento que é Theanthropico, com o incriado Deus presente no homem criado, transformando-o pela graça em seu ser incriado. 
  
No entanto, esta comunhão de seres não criados e criados, que o Incriado livremente quis e voluntariamente iniciou, está fundada em certos pressupostos  essenciais e fixos. Com a Criação, surge um ser que é absolutamente “estrangeiro” para o Incriado em essência (“não no lugar, mas na natureza”, de acordo com São João de Damasco). A distância entre Criador e criatura não é espacial, mas ontológica. São duas coisas completamente diferentes. Deus é o totalmente outro (das ganz Andere). Platão pode ter concebido o fato de que “compreender Deus é difícil, mas expressá-lo é impossível”; mas Gregório, o teólogo, cheio de sabedoria divina como era, admitirá que “expressar Deus é impossível e compreendê-lo é ainda mais impossível”. Não há relação ontológica a ser vista, nenhuma correlação, nenhuma analogia (ENTIS or FIDEI). ) entre criado e não criado. O Incriado não está sujeito às regras da lógica humana, da moral ou da psicologia. Ele está acima e além de tudo isso. Forçar o Incriado a categorias lógicas e morais, que é o que o helenismo faz - é o que sustenta fortemente o pensamento religioso grego, principalmente não-patrístico - não é meramente heresia: é claramente mitologia. Concepções imaginárias correspondentes à natureza criada (humana e animal, Romanos 1:22) são aplicadas aos Incriados. Mas na Tradição Ortodoxa, Deus permanece um mistério inconcebível, mesmo quando se revela às suas criaturas. É impossível que a especulação humana teologize, isto é, fale autoritariamente de Deus, porque o discurso sobre Deus pressupõe a revelação de Deus ao homem. Metafísica, como teologia especulativa, é, na maneira Ortodoxa de falar, mitologia. ( o confronto do século XIV entre o hesicasmo e o anti-hesicasmo (escolasticismo)). 
  
Assim, desde o início da História, o Deus Incriado constrói as pontes para a sua comunhão com o homem criado. Deus “não se deixou a si mesmo sem testemunho ...” (Atos 14:17). Ele provê a comunhão com a Criação, pois, de qualquer forma, é sobre essa comunhão que depende o futuro da Criação. Embora a essência de Deus seja completamente desconhecida e o homem não possa participar dela, ainda assim, sob certas condições, o homem pode experimentar e participar da Energia Incriada de Deus. As palavras de São Basílio são claras: “Dizemos que conhecemos nosso Deus a partir de Suas energias, mas não nos responsabilizamos por aproximar-se de Sua essência. Pois Suas energias são o que vem até nós, enquanto a Sua essência permanece inacessível ”. Deus Incriado comunga com o homem criado por meio de suas energias naturais. Energia, luz, graça, poder, glória, reinado (ou governo ): estes são todos termos teológico-eclesiásticos que expressam a mesma coisa. 
  
O mundo-  universo criado- foi criado para participar da plenitude da vida divina. Uma jornada dinâmica está ocorrendo historicamente, desde o tempo da criação, até o Pentecostes, uma jornada que criou o homem que é chamado a criar. É o movimento da “imagem” para “a semelhança”, que é acompanhado pela sinergia da vontade humana (cooperação) com a vontade divina. É o movimento redentor do homem para com Deus, que, segundo Basílio o Grande, “foi plantado em nós quando fomos criados”. Nas palavras do mesmo Santo Padre, o homem “recebeu o mandamento de ser um deus”. Em outras palavras, ele carrega dentro de si o mandato de se tornar um deus, “conforme a imagem de Seu Filho” (Romanos 8:29). A jornada ascendente à theosis, em direção à união do criado e do não-criado, estabeleceu historicamente o diálogo entre eles, como um processo que às vezes expressa a tragédia e às vezes a glória do homem e, através dele, de todo ser criado. 

2. A apostasia do criado 
  
O mundo criado, embora “muito bom” (Gênesis 1:31), foi feito em um estado potencial, um movimento em direção a um “fim” particular, que só pode ser cumprido dentro da esfera de comunhão com Deus. “Rei” e “Senhor” sobre a criação irracional (Gênesis 1:28): assim foi o homem ordenado pelo Criador, a fim de que ele conduzisse a Criação- e a si mesmo- à perfeição preordenada pelo Criador, transcendendo o criado e unindo-se a Deus. O trabalho do homem deveria ser a manutenção desta comunhão do criado com o Incriado. Segundo São Máximo, o Confessor, com a criação (do mundo), cinco divisões são efetuadas: a do incriado e criado, inteligível e perceptível, o céu e a terra, o Paraíso e o mundo habitado, masculino e feminino. O homem foi chamado a transcender livremente todas essas divisões e alcançar a união com o Incriado e, ao fazê-lo, elevar toda a Criação consigo mesmo. É claro que a distinção entre Incriado e criado nunca pode ser transcendida “por natureza”, mas apenas “pela graça”. Quando o Incriado habita no criado, o segundo, pela graça, torna-se incriado. Este foi o caso, segundo São Gregório Palamas, com São Paulo: “Paulo era um ser criado enquanto viveu a vida que veio do ser para o não-ser, através do mandamento de Deus. Mas, quando ele deixou de viver essa vida, acontecendo aquilo que vem da habitação com Deus, pela graça ele então se tornou incriado. ”. 
  
No entanto, a jornada do homem criado na história, tem a marca da queda, entendida como fracasso (grego, amartia = errar o alvo): o fracasso da jornada do homem, em direção à união com o Incriado. O amoroso movimento em direção a Deus e ao próximo, desloca-se para o ego; a comunhão se volta para a individualidade. A comunhão com o Criador é rompida por parte da criatura. O feto corta o cordão umbilical que o liga ao corpo materno e que dá vida. A ruptura da comunhão com a própria Vida traz a morte em todas as suas formas (espiritual, biológica, eterna, Romanos 5:12). Assim, a morte é introduzida na história e se torna a condição “natural”, a tal ponto que ninguém acredita que ela é “contrária à natureza”. A condição “contrária à natureza”, tornou-se no homem caído a condição “de acordo com a natureza”. Nossa linguagem cotidiana é testemunha disso. Vivemos a tragédia da morte como se fosse uma condição natural. A vida do ser criado está tão ligada à morte, que toda criatura nasce para morrer, introduzindo a morte em sua existência. Isto é o que a Ortodoxia comemora no Domingo do Perdão, nas palavras de Adão: “Ai de mim! Não mais posso suportar a vergonha. Eu, que uma vez fui rei de todas as criaturas de Deus na terra, agora me tornei um prisioneiro, desviado por maus conselhos. Eu, que já fui vestido com a glória da imortalidade, agora, como alguém condenado a morrer, me envolvo miseravelmente nas peles da mortalidade ... » 
  
A Queda constitui a tragédia do homem, porque significa a falha do criado em transcender sua criação e se auto-realizar. Mas o que, essencialmente, foi a Queda? Além de qualquer significado moral ou jurídico, a Queda, da maneira Ortodoxa, é entendida como uma doença da natureza humana, isto é, como a desativação de uma função natural do homem. Em sua condição natural (tradicional), o homem mantém três sistemas de memória: (1) memória celular (DNA), (2) memória de células cerebrais, assentada no cérebro e possuindo razão como órgão, e (3) a faculdade noética. que está estabelecida no coração e tem o "nous", ou, de acordo com a Escritura, o espírito do homem, como seu órgão. O nous é o órgão necessário para o conhecimento de Deus, ou seja, a comunhão experiencial com o Deus Triúno. 

Em sua condição natural, o nous é uma morada (templo) da energia divina incriada; é por meio desta faculdade noética, que o homem "vê Aquele que É, e é iniciado no conhecimento do Espírito" (Troparion, Canon do Pentecostes). A Queda é o escurecimento do nous e a perda de sua função, que ocorre quando o nous é confundido com a razão. Quando se perde a comunhão com Deus, ele fica sujeito às paixões e ao seu ambiente. “Ele adora a criação em vez do Criador.” A auto-adoração (“Eu me tornei um ídolo para mim”, entoam os Ortodoxos no Grande Cânon de Santo André de Creta) se manifesta como a rédea livre do instinto de autopreservação e , paralelamente a isso, como ansiedade, medo e uma busca desesperada por sucesso e segurança. E assim o relacionamento "crucifixional" e amoroso com Deus e a Criação como um todo é destruído. Em vez disso, o homem caído usa Deus e o próximo para assegurar sua própria felicidade e satisfazer seu ego. Uma das mais belas passagens da Sagrada Escritura é a parte em Romanos (8: 18-26) onde diz como a natureza irracional foi compelida pelo homem a segui-lo até a Queda. A criação carrega os estigmas da rebelião do homem contra si mesmo (“a natureza na contenda e dividida contra si mesma” - São Máximo, o Confessor) e, portanto, juntos sofrem e “gemem em trabalho de parto” com ele. Assim, toda a Criação é escravizada pela corrupção e mortalidade do homem. 
  
A doença da faculdade noética é a essência do pecado original ou ancestral. "Nossa natureza foi infectada pelo pecado", observou São Cirilo de Alexandria. E como é uma “doença” que surge no início da jornada do homem na História, ela é transmitida aos seus descendentes como uma doença da natureza, não como culpa legal ou co-responsabilidade moral. 
  
Nem o escurecimento do nous nem a mortalidade (até o ponto do desaparecimento total e retorno ao NÃO SER) podem ser superados, exceto através do Incriado. A imortalidade da alma é um presente do amor de Deus e, portanto, o esforço moral (pietismo) como uma tentativa de salvar a si mesmo é uma reminiscência do homem que se afoga e que, de acordo com o dito, "agarra seus próprios cabelos"! 
  
“A morte é inata nas criações e não pode ser transcendida através de qualquer esforço ou capacidade do próprio ser criado” (Prof. J. Zizioulas). A cura do nous doente e o resultante despertar da criatura é devido, mais uma vez, ao cuidado infalível do Criador pelo homem e iniciativa amorosa. Pois, embora possa ter havido uma ruptura na comunhão com o Criador por parte da criatura caída, contudo o mesmo não ocorreu por parte do Incriado. Deus mantém um olho na criatura em sua queda e faz de tudo para manter as pontes de comunhão com ele. E isso é….. 
  
3. A intervenção redentora do Incriado... 
  
… na jornada da criatura na História. Por causa da Queda, a História deveria logicamente tornar-se uma jornada para a destruição do homem e da criação. Mas, a posição de Deus em face da apostasia do homem, é expressa não como julgamento e ira, mas como amor, que também cria as condições para a resolução do drama humano. Assim, o processo da História desenvolve-se na esfera do plano divino, a “economia divina”; e Deus prova ser o Senhor da História. Em sua liturgia (oração da anáfora), São Basílio descreve como a intervenção salvadora de Deus na história se desenrolou: “Não te voltaste de ti até o fim da tua criatura que fizeste, ó Bom, nem te esqueces da obra das tuas mãos, mas olhas para ele de diversas maneiras, pela tua misericórdia de coração terno. Tu enviaste profetas; Fizeste grandes obras por meio dos santos, que em todas as gerações têm agradado a Ti; Tu nos falaste pelas bocas dos teus servos, os profetas, que nos predisseram a salvação que havia de vir; Tu deste a Lei como uma ajuda; Tu designaste anjos da guarda. E quando a plenitude do tempo chegou (Gálatas 4: 4), Tu nos falaste através do teu próprio Filho ... ” 

No antigo pensamento helênico, como em todo tipo de humanismo, o que é bom atrai e o que é mal repele. É impensável que alguém ame o homem feio, imoral ou pecador, que milita contra a harmonia do mundo moral. Deus, no entanto - compreendido da maneira Ortodoxa - ama tanto o pecador quanto o justo. É por isso que "Ele faz nascer o seu sol sobre os maus e os bons, e faz chover sobre os justos e os injustos" (Mateus 5:45). “Não foi a moeda que procurou a dona de casa, mas Ele mesmo se curvou à terra e encontrou a imagem”, diz São Nicolau Kavasilas em referência à parábola relacionada do Evangelho (Lucas 15: 8f). A parábola da ovelha perdida (Mateus 18: 12) revela essa postura de Deus em relação à sua criatura. Deus está fora de toda limitação moral e psicológica, e não altera disposições como nós. Seu amor é permanente e imutável. Deus nunca odeia. Ele não fica apaixonadamente irritado. Ele não pune. É a maldade humana que transforma o amor de Deus em ódio e castigo. Como São João Crisóstomo testifica: "Não é Ele, mas nós que somos hostis, porque Deus nunca odeia". O amor de Deus não é afetado pela indignidade do homem e não muda junto com o homem. Deus nunca deixa de ser o Pai que espera o retorno do homem ( parábola do Filho Pródigo, Lucas 15: 11). 

E é precisamente por isso que era necessário, no escolasticismo franco, legalizar e adulterar a fé, a fim de fabricar a teoria claramente pagã “concernente à satisfação da justiça divina”, com a morte de Cristo na cruz. Dentro da rede do feudalismo racial franco, as concepções de justiça e sua administração estavam encobertas pelo manto do dogma cristão. O homem “ocidental” não é ensinado a se tornar participante do amor de Deus, mas ser salvo pela ira (inexistente) de Deus! Essa perversão da soteriologia cristã tornou-se o fundamento sobre o qual a civilização cristã ocidental foi construída. 

Ao mover-se em direção a Sua criatura, Deus busca “Sua própria”, Sua imagem distorcida, a fim de renová-la, remodelá-la, restaurá-la à sua “antiga beleza”, para que ela possa continuar sua jornada interrompida rumo à união com Ele. 

A reconexão de criado e Incriado, e a continuação de seu diálogo redentor, funciona como uma possibilidade, mesmo após a Queda. O Logos divino Criador está presente no Antigo Testamento "descarnado" (sem a natureza humana), e Ele mesmo efetua a união com os justos do período anterior a Cristo. A tradição religiosa da raça de Abraão (ou seja, o povo hebreu) é uma continuação da de Enoque e de Noé. Os israelitas são o “povo escolhido” de Deus, não porque Deus mostre parcialidade (Atos 10:34), mas porque a tradição de seus profetas preserva o método de restaurar a comunhão com Deus e, portanto, a teosis e a salvação. Assim, eles se tornam os guias, para o resto do mundo, do conhecimento genuíno de Deus. Isto é o que deveria ter sido o trabalho de Israel na História: como a obra de seus profetas e seus santos. 

O mesmo será verdade- historicamente- para o Novo Israel, os cristãos, que se tornarão o “povo escolhido” de Deus; desta vez, nas pessoas de seus santos. Aqueles que viviam no clima espiritual dos profetas foram ensinados sobre o caminho da vida que leva à purificação do coração, iluminação e deificação (theosis). O mesmo é verdade sobre os filhos espirituais dos Apóstolos e Padres ao longo dos séculos. 

No entanto, a oferta redentora do Incriado ao criado alcança seu ponto culminante na Encarnação de Deus, o Logos. Este evento, em termos cristãos, é o centro absoluto e a pedra angular da História. A história encontra na Encarnação seu verdadeiro significado e seu critério final. Cristo, como Deus-homem, se torna o centro absoluto e enteléquia da História. Ele é o Alfa e o Ômega da História. A Criação e a Segunda Vinda, juntamente com a Encarnação, constituem os principais momentos da História de toda a Criação, e eles selam o Tempo em sua dimensão terrena. O mundo e o tempo adquirem significado através de Cristo, porque eles se movem em direção a Ele que é “a plenitude do tempo” (Gálatas 4: 4). E é por isso que a sabedoria humana se surpreende ao longo da História e coloca a questão: CUR DEUS HOMO? E o deificado Maximos, o Confessor, responde: A Encarnação é “o fim abençoado pelo qual todas as coisas vieram a existir”. Foi por causa da Encarnação de Deus, o Logos, isto é, pelo aparecimento na História do Deus-homem, como a perfeita união histórica de Deus e homem, do Incriado e da criação, que o mundo foi criado de todo. 

Além disso, a Encarnação é o fundamento da salvação entendida como theosis. Com a encarnação, a theosis se torna permanente. Pois, com a sua natureza humana, o Logos Divino encarnado torna-se o “lugar” onde está a comunhão entre Deus e o homem, e também entre os seres humanos, uns com os outros. Na santa Eucaristia, os fiéis comungam a carne, a humanidade de Cristo, e assim tornam-se “membros de um mesmo corpo” com o seu Senhor, o Deus-homem. (Efésios 3: 6). O evento da Encarnação é completado soteriologicamente no Pentecostes. Então Cristo, que subiu e ascendeu aos céus incriados da Divindade, vem novamente no Espírito Santo, para continuar Sua presença redentora no mundo, mas desta vez em uma maneira diferente de existência. Por enquanto, Ele habita dentro daqueles que estão unidos com Ele, e eles vivem “Nele” (João 17: 22-23; Romanos 8: 9 ). 

A Encarnação é a resposta de Deus ao clamor universal da imagem degradada de Deus no homem. O Deus-homem, Jesus Cristo, traz o homem de volta ao ponto de partida de sua jornada, e o remodela, deixando-o não à natureza caída de Adão, mas à sua própria natureza (sem pecado). E assim, Ele se torna o Cabeça de uma nova raça humana. E é por isso que Ele é chamado de “novo” ou “segundo” Adão, que, no entanto, não é “feito de pó”, mas é do céu (1 Coríntios 15:47). Como Paul Evdokimov observa: “A humanidade de Deus corresponde ao homem ser a imagem de Deus. A imagem de Deus no homem e do homem em Deus, é o terceiro termo que governa objetivamente a Encarnação: o potencial ontológico de comunhão dos dois mundos ”. 

Com a Encarnação de Deus, o Verbo, essas cinco divisões de que falamos anteriormente são transcendidas. Cristo, como Deus-homem, se torna “nossa paz” encarnada (Efésios 2: 14), quando Ele reconecta o homem com Deus e reconcilia os homens uns com os outros. Em Seu corpo, a Igreja, todas aquelas diferenças e conflitos que o pecado introduziu na vida são removidos; e, por Sua graça que supera a morte e nossa divisão, todos nós, judeus e helênicos, escravos e homens livres, homens e mulheres, adquirimos o potencial de nos tornar “Um em Cristo”; um novo homem: o homem da graça, novo em Cristo. Por isso, é necessário reunir o criado em uma Igreja, porque com a vitória em Cristo sobre toda forma de morte, todos os homens são "potencialmente" irmãos, e todas aquelas antíteses que o pecado causou na esfera criada, podem ser removidas. Com a Sua Encarnação, Cristo não melhora, simplesmente, a sociedade humana. Ele oferece uma nova sociedade de Seu corpo e convida todos a unir-se a ela, para que a recriação e reformação do homem -e da sociedade- sejam realizadas de uma nova forma de existência, a saber, a Sua própria vida, a vida de Cristo. São Paulo proclama: "Se alguém está em Cristo, ele é uma nova criatura" (2 Coríntios 5:17), o que significa recriação de todas as coisas, em um relacionamento dinâmico com o Logos criativo; isto é, um relacionamento não só com Deus, mas também com a natureza que é sua criação. Assim, a Encarnação afirma o valor do mundo criado como um todo e nega qualquer dualismo filosófico na esfera antropológica. Tornando-se um templo do Espírito Santo, o homem, com todo o seu ser, vive a unidade da Criação e é um estranho a toda idéia de explorar, poluir ou destruir o meio ambiente, que é uma extensão de sua própria natureza. 

Esta transformação do criado, em sociedade Santo-Espiritual e fraternidade sem classes, é realizada dentro de Cristo '. A “Igreja”, no entendimento Ortodoxo, é a humanidade deificada de Cristo, o “lugar” tangível e específico de nossa união em Cristo. Isto é o que São Cipriano de Cartago quis dizer quando disse: “fora da Igreja não há salvação” (EXTRA ECCLESIAM NULLA SALUS). Ou seja, fora da Igreja, não há possibilidade de theosis-salvação e de transformação do auto interesse em amor altruísta, que é a quintessência da sociedade genuinamente em Cristo. A Igreja como o corpo de Cristo (Efésios 1:23) é a “hospedaria” da parábola do Bom Samaritano (Lucas 10: 25). (Em grego, a palavra para “pousada” é pan-docheion, que significa um receptáculo para todos os tipos de pessoas.) Similarmente, a Igreja aceita “todas as pessoas”, a fim de guiá-las para essa transformação. Tudo está pronto nesta Igreja-pousada, no que diz respeito ao Incriado; pronto para curar e salvar o criado e restaura-lo à totalidade novamente. 

4. O caminho para a união 
  
Cristo, “unindo criado e Incriado (através de Sua Encarnação), conquistou a morte, (mas) através de uma vitória não obrigatória à existência, mas um potencial que é conquistado pela liberdade e amor” (John Zizioulas, Metropolita de Pergamon) ). Nossa natureza foi salva em Cristo, mas não nossa pessoa. Ao tornar-se encarnado, Deus, o Logos, assumiu uma natureza “individual”, que é, no entanto, o inicio do que somos feitos. A theosis -de cada um de nós- é possível por causa da unicidade da natureza humana como um todo. A salvação em Cristo é oferecida a todos os homens, mas, para que seja ativada, requer nossa resposta. Essa resposta se manifesta como “sinergia”, cooperação com a graça divina. 

O “banquete” do (assim chamado) reino está pronto (Lucas 14:16) e Deus aguarda a resposta da criação ao Seu convite. Segundo São João Crisóstomo: “Deus faz praticamente tudo; Ele deixou algo mínimo para nós fazermos. ”Esse“ algo mínimo ”é a resposta do homem. A Ortodoxia Patrística é o cristianismo autêntico e a única (e Una) Igreja, precisamente porque preserva a maneira de alcançar a theosis, isto é, a união em Cristo com o Deus Incriado. As heresias não são ortodoxas, porque ao fazer da ortodoxia uma religião com seu ritualismo, ou fazer do cristianismo uma ideologia por meio de seu racionalismo e legalismo, rejeitam ou desconhecem o método que leva à theosis e, consequentemente, não a oferecem como uma possibilidade. Além disso, as religiões não têm - e, portanto, não oferecem - o doador da theosis, ou seja, Cristo, e é por isso que eles resultam em adoração de demônios ( "todos os deuses dos gentios são demônios" Salmos 95: 5). 
  
A resposta da criação ao convite divino é, na Ortodoxia, efetuada através da aceitação voluntária (gratuita) da cura que a Ortodoxia oferece. A cura (ou terapia) consiste em um processo dividido em três etapas: (1) purificação do coração (das paixões) e do nous (dos pensamentos, bons e maus); (2) iluminação - a visita do Espírito Santo ao coração; e (3) theosis, isto é, a restauração do ser humano, com sua glorificação na graça incriada da Santíssima Trindade. Este é o processo de salvação que os santos seguem (a oração antes da Santa Comunhão, de São Simeão, o Novo Teólogo: “e Tu purifica, ilumina e nos torna participantes na Luz ...”). Na Ortodoxia, os mistérios-sacramentos e o esforço ascético andam de mãos dadas, em uma relação complementar: o esforço ascético, como o “retorno de uma condição contrária à natureza, segundo a natureza” (São João de Damasco); e os sacramentos como meio pelo qual a graça é transmitida. 
  
Pode-se, assim, entender por que a antítese do ascetismo e do moralismo é intransponível na Ortodoxia. O moralismo regula o ethos, impondo as regras de um dado sistema moral, baseado nos poderes naturais dos homens. Isso inevitavelmente termina em farisaísmo, isto é, em “auto justificação” e “salvação baseada em obras”. Pelo contrário, o ascetismo, com os meios dados por Deus à sua disposição, visa a purificação do coração para que o homem se torne - por meio da Energia Incriada de Deus - um templo do Espírito Santo, para que ele produza o fruto (Gálatas). 5:22). O ascetismo Ortodoxo restaura o diálogo redentor do criado e do Incriado, na forma de comunhão entre eles e potencial à theosis da criatura, entendendo, claro, que theosis não é uma recompensa, mas a Graça (um dom). O esforço ascético simplesmente torna o homem receptivo à salvação. A Igreja funciona na História como uma sociedade escatológica, isto é, como uma sociedade da theosis. 
  
A cura do ser humano, isto é, sua libertação da mortalidade e da corrupção, traz consigo a liberdade de toda a Criação, ou seja, da natureza, “desde a escravidão até a decadência” (Romanos 8:21). “Para isso, a natureza perecível deve vestir o imperecível, e essa natureza mortal deve revestir-se da imortalidade” (1 Coríntios 15:53). 
  
A experiência da Ortodoxia mostra que esta passagem se refere aos estados - não da era vindoura, mas do presente - um fato desconhecido para a não-Ortodoxia. A transcendência da corrupção pelo criado é, para a Ortodoxia, uma realidade que se realiza no tempo histórico, como mostram as relíquias dos Santos, com a suspensão da corrupção natural e decadência física de seu sistema celular. As relíquias sagradas, como a de São Spiridon († 348), na ilha de Corfu, são para a Ortodoxia uma prova tangível do fato da theosis, da comunhão do criado com o Incriado. E, ao mesmo tempo, eles são a auto verificação da Ortodoxia. O mesmo pode ser dito sobre a transcendência da corrupção na própria natureza inanimada, como no caso da água benta, que não se torna obsoleta com o tempo. É por esses eventos, divinamente trabalhados, que a Ortodoxia é salvaguardada ao longo do tempo, e não pela palestra metafísica e especulativa dos teólogos profissionais. 

No pensamento positivista, o sentido da vida é encontrado no período de tempo entre o começo e o fim biológico do homem. Na Ortodoxia, o significado da vida ultrapassa os limites do mundo atual. O homem, como um ser theanthropico, está dentro da História. A Esperada Segunda Vinda de Cristo é a iluminação e o julgamento da história de cada pessoa e do mundo inteiro, como fatores da História. Mas, o importante é que, de acordo com a crença Ortodoxa, não esperamos a destruição do mundo e o fim da História, mas a transfiguração da Criação: “Porque a forma deste mundo está passando” (1 Coríntios 7:31) e esperamos “novos céus e nova terra” (2 Pedro 3:13), em uma continuação meta-histórica. O que acontecerá é uma transformação do mundo e do tempo. Consequentemente, a História não terminará, mas continuará em outra forma. A eternidade é uma continuação da História, ou melhor, a História é um segmento da eternidade. A história dos santos, daqueles que alcançaram a theosis, continua após a morte e depois da Segunda Vinda de Cristo, como História após a História. Isto foi expresso pelo historiador Eusébio de Cesaréia: “Ele não diz que os céus perecerão, mas serão novamente formados para um fim melhor…. Pois da mesma maneira que nossos corpos, quando se dissolvem, não passam à inexistência, mas são renovados pela incorrupção ... da mesma forma, os corpos celestes são renovados pelo dito "fogo"; porque eles também são libertados da escravidão à decadência ”. 
  
Essa transcendência permanente sobre a decadência e, consequentemente, a transição contínua da historicidade para a meta-historicidade, é o que a Igreja alcança como um corpo de Cristo. Esse é o propósito da existência da Igreja. Na vida do corpo da Igreja, a graça da Santíssima Trindade santifica continuamente o criado. Através do homem que está sendo santificado, a natureza material ao seu redor também é oferecida a Deus como água e óleo, pão e vinho, flores e frutos ou a prole dos animais, que são trazidos ao altar sagrado para serem santificados e abençoados. O homem e a criação viajam juntos para o encontro final com o Criador e entregam-se a Ele, “para que Deus seja tudo em todos” (1 Coríntios 15:28). 


continua...

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