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Sobre o Arrependimento - "O Homem Oculto do Coração" - Capítulo VIII










"O Homem Oculto do Coração"
por Arquimandrita Zacharias de Essex


CAPÍTULO OITO 
  
SOBRE ARREPENDIMENTO 
  

Se quisermos falar sobre arrependimento, devemos começar desde o início, desde a criação do homem por Deus. No Paraíso, Adão foi guardado em grande honra. Ele era angelical. Ele estava em contato direto com Deus e vivia em Sua presença. Ele conversou com Ele face a face e O glorificou junto com os anjos. Ele foi nutrido por toda palavra que procedeu da boca de Deus. Apesar de toda essa honra, ele foi enganado, como sabemos, pela serpente, e seguiu sua tendência demoníaca, a saber, se erguer contra Deus no desejo de suplantá-Lo. E, assim como o inimigo havia caído do céu como um raio, por causa de seu desejo arrogante de colocar seu trono acima do de Deus, Adão também caiu rapidamente. O salmista disse: 'O homem que está em honra e não entende, é como os animais que perecem' (Sal. 49:20). 
  
O exílio de Adão do Paraíso precipitou a divisão catastrófica entre os mundos visível e invisível. Ele caiu, apesar do aviso de Deus, e sua queda foi da maior magnitude possível. No entanto, devemos pensar em nossa queda como ainda maior que a de Adão, pois sabemos o que aconteceu com Adão e, no entanto, continuamos repetindo o mesmo erro. 
  
O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, um 'espelho' destinado a refletir todas as virtudes de Deus. Essas virtudes não devem ser entendidas em um sentido moral, mas como propriedades ou Energias Divinas, como sabedoria, luz e beleza. No Paraíso, o homem era transparente para a graça de Deus; quando ele caiu, no entanto, o espelho de sua alma ficou escuro e não refletia mais nada da luz gloriosa de Deus. No entanto, o dom que Deus lhe havia concedido era tão grande que alguns dos justos do Antigo Testamento foram capazes de vislumbrar ocasionalmente a Luz Divina. Eles viram o mundo espiritual e deram testemunho dele. Lembramos do profeta Isaías, que, tendo visto a glória de Deus, foi chamado ao arrependimento pelo Senhor com as palavras: 'Meus pensamentos não são os seus pensamentos, nem os seus caminhos, meus caminhos, pois os céus são mais altos que a terra, assim são os meus caminhos mais elevados que os teus e os meus pensamentos que os teus '' (Isaías 55: 8–9). O Senhor revelou a Seu Profeta a tensão extrema que existe entre o mundo caído e a 'terra dos viventes’(Isaías 38:11; 53: 8), e o grande abismo que separa os dois. A partir de então, Isaías viu a luz deste mundo como trevas, em comparação com a luz do mundo espiritual que lhe fora revelada, [1] e lamentou dentro de si: 'Ó homem miserável que eu sou'. 
  
Outro profeta orou no mesmo espírito, e sua oração é a de todos os homens justos do Antigo Testamento: ' Deus tenha misericórdia de nós e nos abençoe; e faça resplandecer o seu rosto sobre nós. Para que se conheça na terra o teu caminho, e entre todas as nações a tua salvação.’ Salmos 67:1,2. 
  
E quando finalmente chegou a plenitude dos tempos, como lemos nas Escrituras (Gál. 4: 4), e o Senhor viu que uma pessoa estava trabalhando com justiça na terra e que era digna dEle, Ele veio, curvando os céus (cf. Sal. 144: 5), e brilhou da[através] Virgem. “O povo, que estava assentado em trevas, Viu uma grande luz; aos que estavam assentados na região e sombra da morte, A luz raiou”, lê a descrição do evento no Evangelho de São Mateus (Mateus 4:16). E essa 'grande luz' começou mais uma vez a falar com o homem, continuando assim a conversa que havia sido interrompida no Paraíso. 
  
A Luz estava perguntando a nossos antepassados: “Adão, onde estás? Eva, onde estás? O que você fez? “ Mas nenhum deles respondeu: “Aqui estou, Senhor. Estou me escondendo porque pequei contra Ti, por minha própria culpa, e me arrependo. Perdoe-me.” Nenhum dos dois disse nada disso; em vez disso, Adão lançou responsabilidade sobre Eva e Eva sobre a serpente. Adão chegou a culpar a Deus. ' A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi. ', disse Adão (Gênesis 3:12), que significa: “É culpa sua.” E o Senhor, que nunca constrange alguém e nunca se impõe a ninguém, partiu. Deixou que sofressem as consequências de sua desobediência, trabalhassem na terra até que “caíssem em si”, como fez o Filho Pródigo. 

Agora, essa 'grande luz' brilha da Virgem, para retomar o diálogo com o homem. Mas desta vez, Deus não pergunta: 'Adão, onde estás?' Em vez disso, ele diz: 'Arrependa-se e acredite no Evangelho'. Há muitos lugares no Novo Testamento em que o Senhor nos chama ao arrependimento. Ele ilumina o mundo através de Sua palavra, sendo a mensagem básica que nunca devemos nos contentar com a ordem visível das coisas, porque, no estado caído, elas são abomináveis aos olhos de Deus. Em vez disso, ele nos ensina que a vida e a vida em abundância ( João 10:10) devem ser conquistadas por uma conduta que contrasta com a das nações, cujos governantes exercem autoridade e são chamados benfeitores ( Mt 20: 25) Pois o Senhor anula a ordem visível das coisas e declara: “Quem quiser ser o primeiro, seja o último” (cf. Mt 19:30; 20: 26–27). Ele pede o nosso arrependimento: 'Não vim chamar justos, mas pecadores” ao arrependimento (Mateus 9:13), porque Ele sabe que o arrependimento sozinho pode curar a natureza do homem ferido pelo pecado. " Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes ", diz o Senhor (Mateus 9:12). Em outras palavras, Cristo não vem para aqueles que acreditam serem sãos, que são justos aos seus próprios olhos, mas para os pecadores que precisam de cura. Ele vem para salvá-los e restaurar a ordem primordial. 
  
E o chamado de arrependimento de Cristo não ficou sem resposta: mesmo antes de o Senhor ressuscitar dos mortos, o Bom Ladrão se arrependeu na Cruz. Ele foi evangelizado; ao contrário de Adão, ele escolheu se abater, e por essa razão o Senhor o levantou e concedeu o Paraíso no mesmo dia. Assim, o Senhor nos mostra que quem quiser subir e estar com Ele, não deve ter medo de descer primeiro, pois esse é o caminho verdadeiro, e Ele mesmo já o pisou, concedendo-nos liberdade do pecado e da morte. 
  
Todo homem, então, que já entrou em contato com Deus, antes e depois da encarnação de Cristo - seja ouvindo Sua palavra, vendo Sua glória, ou mesmo recebendo uma revelação negativa, na forma de uma consciência da profundidade de sua queda - foi levado ao arrependimento. E no dia de Pentecostes, imediatamente após a descida do Espírito Santo, São Pedro ergueu-se e continuou a pregar o Evangelho de arrependimento de Cristo pelo perdão dos pecados. 
  
Eu encontrei uma excelente definição de arrependimento na Epístola de São Tiago. O Apóstolo coloca da seguinte maneira: ' Portanto, livrem-se de toda impureza moral e da maldade que prevalece, e aceitem humildemente a palavra implantada em vocês, a qual é poderosa para salvá-los' (Tg 1:21). A partir dessas palavras do Apóstolo, vemos que o arrependimento implica um retorno àquilo que Deus nos deu no princípio: no arrependimento, recebemos novamente o sopro ativo do Senhor, o próprio sopro pelo qual o homem foi formado à imagem e semelhança de Deus. Quando dizemos que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, queremos dizer que ele foi criado à imagem e semelhança de Suas Energias Divinas: Seu amor, graça e sabedoria. E para poder receber essa respiração ativa, a Palavra imanente enxertada, e participar dessas Energias Divinas, precisamos primeiro purificar-nos, afastando toda a maldade e extirpando de nossas almas tudo o que é estranho. 

 Sempre que o homem entra em contato com esta Palavra, algo dentro dele é ativado, e o dom primordial que ele recebeu no momento de sua criação é despertado. O homem então toma consciência de seu estado abominável e da verdade de que, desprovido da graça de Deus, ele é como um animal irracional, e a obra do arrependimento é desencadeada nele. Em outras palavras, o homem só pode chegar ao verdadeiro arrependimento se já vislumbrou o outro mundo; ele está então em posição de ver seu estado pecaminoso à luz do estado em que deveria estar. 

É no 'outro mundo' da Divina Liturgia que somos supremamente capacitados para ver Cristo. Na Santa Eucaristia, somos cativados pela visão d’Aquele que, sendo rico, por nossa causa, ficou pobre, para que, por Sua pobreza, pudéssemos ficar ricos (2 Cor. 8: 9), por meio d’Aquele que deu a vida por nós para que vivamos para sempre (João 10:15; 4: 9). Todas as coisas proferidas, oradas e realizadas na Divina Liturgia depositam nossas almas na aversão à nossa pecaminosidade, nosso estado decaído, e sentimos a necessidade de nos humilhar diante da suprema Imagem de mansidão e amor que é retratada para nós na Eucaristia. A Divina Liturgia deve incitar infalivelmente em nós o desejo de arrependimento, o desejo de alterar nossas vidas. Também encontramos Cristo quando nossos corações recebem Sua palavra. Quando lemos as Escrituras Sagradas, uma pequena frase geralmente ganha vida dentro de nós, gerando em nós o desejo de arrependimento. Sabemos pela vida dos santos que uma única palavra pode ser suficiente para fazer alguém fugir para o deserto, fortalecido pela obra do arrependimento e, finalmente, tornar-se grande aos olhos de Deus. Foi o caso de Santo Antônio, que ouviu o Evangelho ler durante a Divina Liturgia: 'Vai e vende o que tens, e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu: e vem e segue-me' (Mat. 19:21), e prontamente partiu para o deserto, para aplicá-lo, e então se tornou como um ‘deus’(NdoT: na Tradição Ortodoxa, “tornar-se deus” tem a ver com  unir-se a Ele – theosis/divinização - através da oração contínua e da participação na vida da Igreja) entre os Pais do Deserto. 
  
O verdadeiro arrependimento é realmente um dom de Deus. (Lembro-me do padre Sofrônio dizendo de alguém "esse homem tem o dom do arrependimento".) Esse dom é gerado em nós quando vemos a mansidão e o amor de Cristo; ao mesmo tempo, sentimos um desejo ardente de conhecê-Lo mais plenamente. Nosso anseio por nosso Criador ocorre no nível ontológico, e não no plano psicológico. Portanto, nossa visão também deve sofrer uma mudança ontológica, para que não possamos mais nos comparar com nossos semelhantes, mas nos ver à luz de nosso Criador. Assim como o Senhor Encarnado tem uma natureza dupla, a natureza do homem deve se tornar dupla: ele deve adquirir a natureza divina de seu Criador, não em sua forma essencial, que é apropriada apenas a Deus, mas em sua forma energética. E quando ele começa a viver ontologicamente, o homem percebe que não há fim para o arrependimento. Pe. Sofrônio costumava dizer que o arrependimento não tem fim, desde que percebamos algum ponto dentro de nós mesmos, porque Deus é luz, e devemos nos tornar tão transparentes quanto Ele. "Quanto mais claramente eu" vejo "Deus", diz pe. Sofrônio, 'quanto mais ardente meu arrependimento se torna, já que reconheci mais claramente minha indignidade diante d’Ele' .[2] 
  
O arrependimento é a volta de todo o nosso ser para Deus, mesmo quando sentimos uma certa dor dentro de nós. Essa dor é amarga no começo, porque carregamos as feridas do pecado; mas uma vez que nossas feridas se curam, o arrependimento se torna doce. Um dos santos diz que o mel é doce para a língua, mas se a língua é ferida, em vez de provar doçura, ela sente dor. O mesmo se aplica ao arrependimento. Quando vemos nossa pobreza, lamentamos sobre ela, até que nossas lamentações sejam transformadas em lágrimas de amor por esse nosso grande Deus. 
  
Como dissemos anteriormente, nunca podemos nos arrepender o suficiente, por conta de como nos vemos à luz do reino ontológico do céu; pela mesma razão, nunca podemos agradecer a Deus o suficiente. Pe. Sofrônio confirma que qualquer forma de autossatisfação é uma ilusão que paralisa a alma. São Paulo admoesta os coríntios: “E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido? Já estais fartos! já estais ricos! sem nós reinais! e quisera reinásseis para que também nós viéssemos a reinar convosco!” (1 Cor. 4: 7–8). O Apóstolo os reprova por terem caído na mesma ilusão de nosso antepassado Adão, que queria reinar independentemente de Deus; e ele indiretamente aponta a importância da pobreza espiritual. Em seu livro, “We Shall See Him as He Is”(sem tradução para o português), pe. Sofrônio descreve o dom da pobreza espiritual da seguinte maneira: 

As palavras do Salmo 34 se mostraram verdadeiras para mim em mais de uma ocasião: Clamou este pobre, e o Senhor o ouviu, e o salvou de todas as suas angústias...pois nada falta aos que o temem". 'Não é nada feliz se ver como um' homem pobre ', perceber a cegueira. É doloroso ao extremo ouvir-me condenado à morte por ser o que sou. Contudo, aos olhos de meu Salvador, sou abençoado por esse reconhecimento de que sou pobre de espírito ( Mt 5: 3). Essa visão espiritual está conectada com o 'reino dos céus' revelado para nós. Devo ver Cristo 'como Ele é' para me confrontar com Ele e, assim, perceber minha 'deformidade'. Não posso me conhecer a menos que tenha Sua Santa Imagem diante de mim. Meu desgosto comigo mesmo foi, e continua sendo, muito positivo. Mas minha aversão gerou oração de desespero singular que me mergulhou em um oceano de lágrimas. Não conseguia imaginar nenhuma cura possível para mim - não havia como transformar minha feiura na semelhança de Sua beleza. E essa oração frenética, que me abalou profundamente, despertou a compaixão do Deus Altíssimo, e Sua Luz começou a brilhar na escuridão do meu ser. Em profundo silêncio, me foi dado contemplar Sua clemência, Sua sabedoria, Sua santidade.3 
  
Em outras palavras, nossa lamentação procede da conscientização de nosso empobrecimento e assume a forma de luto espiritual. O choro é um presente de Deus que unifica todos os poderes da alma e nos eleva ao nível dos mandamentos divinos, que nos ordenam a amar a Deus com todo o coração, com toda a mente e com todo o nosso ser. E quando tentamos praticar Seus mandamentos, percebemos que não somos nós que os guardamos, mas Cristo que nos guarda por Seus mandamentos e restaura a imagem de Deus em nós. 
  
No Paraíso, Adão viveu na plenitude dos mandamentos, mas apenas enquanto foi obediente e não comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal. Ele possuía o dom de Deus, o próprio sopro de Deus, e gozava de grande segurança, pois estava estabelecido em tudo de bom. Por desobediência, no entanto, Adão perdeu tudo dessa bem-aventurança. E Deus, em Sua bondade inefável, plantou outra árvore - não no Paraíso, mas no coração do homem - e deveria ser mantida viva pelos 'rios de água escorrendo dos olhos do homem' (Sal. 119: 136 ) Agora, esses rios de lágrimas constituem o dom do luto espiritual, a ferida do coração, a forma mais elevada de arrependimento. Pois quando o homem de seu livre arbítrio recebe essa ferida em seu coração, ele se torna completo novamente; seu ser recupera sua integridade e ele cumpre os mandamentos de Deus na medida do possível. Como Pe Sofrônio enfatiza que o homem nunca pode alcançar o cume dos mandamentos de Deus, mas, até certo ponto, ele é capaz de progredir neles e, ao fazê-lo, é curado. 
  
Todos os Padres valorizam muito o luto espiritual. Vemos isso, por exemplo, nos escritos de São Simeão, o Novo Teólogo, ou na carta de São Gregório Palamas à freira Xenia. Mas não é fácil aprender a chorar corretamente. Se chorarmos no nível psicológico, murcharemos e extinguiremos toda a vida em nós; enquanto que, se chorarmos espiritualmente, não apenas não sofreremos nenhum mal, como seremos regenerados. Em "We Shall See Him as He Is", pe. Sofrônio explica a diferença entre o luto espiritual e o psicológico.4 Segundo ele, o luto psicológico é uma questão de nossa vida restrita ao plano visível. O choro espiritual ocorre quando nos referimos a todas as nossas experiências com Deus, de Quem dependemos para tudo, pois só podemos lamentar a distância que nos separa dEle. 
  
Frequentemente, sofremos dores e mágoas no nível psicológico quando encontramos energias que esmagam nosso coração. Mas devemos nos elevar acima dessas experiências negativas, e o fazemos explorando a dor sentida no coração de um incidente específico e convertendo-a em energia espiritual. Pe. Sofrônio costumava enfatizar que devemos aprender a transferir todo estado psicológico - seja devido a doenças, desprezo de outras pessoas, perseguição ou incapacidade de nossa natureza - para um nível espiritual, por meio de um pensamento positivo. E fazemos isso simplesmente mantendo nossa mente no lugar onde está o Filho de Deus. Pensamos nas coisas que estão no alto, como São Paulo aconselhou os filipenses (Fil. 4: 8). 
  
Um dos Pais do Deserto perguntou a seu jovem discípulo como aprender a chorar em oração. Ele respondeu: ‘É um hábito; um homem deve perseverar por um longo tempo para adquiri-lo, com uma mente sempre consciente dos pecados que cometeu e do inferno. Ele deve sempre estar consciente da sepultura e de como seus antepassados partiram desta vida e onde estão agora. ”O irmão, querendo saber mais, perguntou novamente: 'Um monge deveria lembrar de seus pais que morreram, e outras coisas? ”A que o ancião respondeu: 'Pense em qualquer lembrança que traga contrição à sua alma. Então, se as lágrimas vierem, você pode transferir o centro dos pensamentos, que os levaram às lágrimas, para seus próprios pecados ou para qualquer outro pensamento em busca de arrependimento. '5 (Transformar estados psicológicos em espirituais é a grande cultura do monaquismo, e, a menos que um monge aprenda a fazê-lo, ele nunca será realmente realizado em sua vocação monástica, porque encontrará tais estados o tempo todo. Por exemplo, um irmão diz uma palavra dura para mim e me fere. Existem dois caminhos para reagir a essa energia que esmaga meu coração. Eu posso reagir amargamente e dizer: "Que ingrato ele! Sou tão gentil com ele há anos, oro e cuido dele, e veja como injustamente ele me trata! Ele é um homem mau. "Essa é a reação psicológica normal das pessoas no mundo. Mas há outra reação. A dor é real e vai direto para o coração, mas sem pensar sobre de onde veio essa dor, mudo a direção do meu pensamento e digo: 'Senhor, Tu viste minha indolência e minha negação e enviaste Teu anjo para me acordar. Tende piedade de nós". Eu uso a energia da emoção e direciono meu pensamento para Deus e oro pelas coisas de que preciso. Sempre podemos usar essa energia amarga dentro de nós para orar pelo perdão de nossos pecados. Assim, converto a energia psicológica em energia espiritual e entro em diálogo com Deus, e no final me sinto revigorado e nem me lembro de onde comecei ou de quem me deu o golpe. Assim, qualquer coisa que restrinja nosso coração é útil para nos levar à contrição. Pe. Sofrônio encoraja essa disposição com o fato de que Cristo, sempre que estava ameaçado de morte, não pensava nisso como vindo dos soldados romanos ou judeus - ele sempre via o cálice que o Pai lhe estava dando. Sua mente estava em diálogo perpétuo com Seu Pai, e Ele desconsiderou a maneira pela qual a morte o estava ameaçando. Novamente, na Pessoa de Cristo, encontramos nosso exemplo em todas as situações que poderíamos encontrar.) 

Alguém pode objetar: 'O que eu faço se esse dom do Espírito Santo não me for concedido?' Lembre-se das palavras do Senhor: ' Arrependei-vos, e crede no Evangelho ' (Marcos 1:15). A fé gera em nós o desejo de guardar a palavra de Cristo, testá-la e provar a Verdade viva dela; tendo-O provado, chegamos a conhecê-Lo. É aceitável e até agradável a Deus que 'experimentemos' com Ele e O testemos. O próprio Deus nos provoca a fazê-lo: 'Venha e veja', ele diz aos Santos André e João (João 1:39). "Venha e veja", diz o apóstolo Filipe a Natanael, que estava em dúvida (João 1:46); e através deles o mesmo convite é dirigido a todos nós que hesitamos. Em sua Epístola aos Romanos, São Paulo menciona as pessoas que não provaram Deus, que não 'experimentaram' com Ele e que, portanto, não O conhecem (Rm 1:28) .6 Assim, através da fé e do nosso desejo de conhecê-Lo, pedimos a Deus que 'nos abra as portas do arrependimento' e nos conceda o dom das lágrimas. 
  
O luto espiritual é reforçado pela autoacusação, por culpar a si mesmo, e isso contraria diretamente a resposta de Adão a Deus quando ele se afastou do Paraíso. Adão não podia se culpar, mas atribuiu a Deus a responsabilidade por sua transgressão. Assim, ele se tornou indigno do dom do arrependimento, e Deus permitiu que ele sofresse o exílio para que ele pudesse descobri-lo. Portanto, devemos nos apegar ao exemplo de Cristo, o Novo Adão, e voluntariamente assumir a culpa por tudo através da autocondenação. Esse processo nos une à própria Cruz de Cristo, pois foi realizado voluntariamente, não para Seu próprio benefício - já que o Senhor estava "sem mancha e sem defeito" (1 Pedro 1:19) e, portanto, não precisava arrependimento - mas para a nossa salvação. 
  
A autocondenação, portanto, antecipa e mitiga o julgamento de Deus, pois Ele tem prazer em Sua misericórdia de nos poupar da condenação legítima por vir. Além disso, através da autocondenação e do consolo do choro espiritual, recebemos grande esperança e somos espiritualmente ampliados; e embora a graça do arrependimento ilumine a profundidade de nossa queda, ainda assim não nos desesperamos, pois essa mesma graça nos conforta. Quem empreender o arrependimento de maneira sã intensificará, portanto, seu clamor a Deus, que é capaz de nos salvar da morte que ameaçou destruir a vida humana desde o início. Segundo São Paulo, é pelo medo desta morte que todos pecam ( Hb 2:15). O medo da morte tornou todas as pessoas egoístas e, em nosso egoísmo, transgredimos ao tentar sobreviver alheios de Deus, de acordo com nossos meios distorcidos e arbitrários. 
  
Como dissemos anteriormente, dois abismos estão diante de nós: a profundidade da misericórdia e amor de Deus, mostrada por Sua Cruz à qual nos unimos, lamentando voluntariamente nossas transgressões, e a profundidade do estado decaído em que nos encontramos. Ambos nos levam a intensificar nosso clamor a Deus, no caminho de todas as almas justas, e a graça vem em nosso auxílio e nos fortalece, pois carrega em si a semente da vida eterna. Essa semente e o consolo que a acompanha nos inspiram a empreender uma luta impressionante com a escuridão que descobrimos dentro de nós mesmos, até que tudo seja "engolido pela vida" (2 Cor. 5: 4). Ficamos constrangidos pelo abismo do amor de Cristo, pela Cruz e pela graça de Sua ressurreição, por um lado, e pelo abismo de nossa queda, por outro. O abismo de nossa queda clama ao abismo da misericórdia do amor de Cristo (Sl. 42: 7), e se adquirirmos essa visão dupla em nossa vida, nunca deixaremos de ser inspirados dia e noite. Para ser confirmado nessa visão dupla, nos recusamos a nos comparar com qualquer coisa desta terra: se quisermos lamentar com toda a nossa mente e coração, devemos ser resolutamente e exclusivamente determinados ao Autor e Consumador de nossa fé - o O próprio Senhor Cristo (cf. Hb 12, 2). 
  
Assim como o Paraíso foi preservado pelo mandamento de Deus, nossa natureza decaída é continuamente restaurada pelo arrependimento. O arrependimento nunca acaba em nossa vida na terra. Se assim fosse, significaria que nossa semelhança com Cristo Deus, que é luz e em Quem não há mancha de escuridão, havia sido aperfeiçoada. A verdade é que precisamos de arrependimento enquanto vivermos e formos alimentados por alimentos corruptíveis, pois nosso corpo atual está sujeito à morte. Na medida em que nos arrependemos aqui na terra, nos tornamos semelhantes a Ele; mas por Sua graça, nos tornaremos infinitamente mais na vida futura. 

No final do sétimo degrau da escada da ascensão divina, São João do Sinai diz que não seremos condenados por não termos realizado milagres, ou por não termos sido grandes teólogos ou contemplativos. No entanto, precisaremos prestar contas por não termos lamentado o suficiente por nossos pecados, pelo nosso estado de corrupção e nossas imperfeições. Pois sabemos muito bem (e as orações de nossa Igreja confirmam) que nenhum homem pode viver um único dia na terra sem pecado. Sendo assim, devemos fazer o máximo para nos manter afastados do pecado, cultivando a nova árvore do paraíso espiritual que se enraizou em nosso seio e regando-a com as correntes das nossas lágrimas. E Aquele que será entronizado em nossos corações se mostrará mais forte do que aquele que governa este mundo (1 João 4: 4). Em outras palavras, a presença de Deus deve tornar-se ativa dentro de nós para que o inimigo, possuidor deste mundo e atormentador de nossas almas, seja vencido. A vigilância se torna progressivamente mais fácil, e nós nos tornamos mais capazes de proteger nossos corações dos maus pensamentos que nos cercariam. De fato, o arrependimento também é realizado em prol da vigilância: quando esse fogo de arrependimento e luto espiritual começa a arder intensamente no homem, a vigilância se torna tão natural para ele que nenhum pensamento maligno pode se aproximar; e se ousa fazê-lo, não pode suportar o calor desse fogo interior e foge. Certa vez, na Montanha Sagrada, um monge muito bom, que agora é eremita, me disse: 'Estamos em paz enquanto nosso coração estiver com dor de arrependimento'. Com isso, ele quis dizer que é a dor do arrependimento que torna fácil o jugo de Cristo, como está escrito (Mt 11: 29–30). 
  
Aqueles que conheciam a Luz Incriada, como Isaías e os outros profetas, bem como os santos, ficavam inconsoláveis sempre que retornavam à realidade deste mundo, e estavam preparados para fazer qualquer sacrifício e esforço para recuperar o abençoado estado de arrebatamento em Deus. Isso está claramente descrito na vida de São Silouan. Nos quarenta anos ou mais, seguintes à sua visão do Cristo vivo, ele não conseguiu mais se entregar ao sono. O semblante humilde e manso de Cristo estava sempre diante dele, não permitindo que ele descansasse até o fim de sua vida. Se ele não tivesse contemplado O próprio Semblante do Humilde Salvador, como afirmou, teria sido impossível para ele suportar uma única daquelas intermináveis noites de vigília e luta; e, no entanto, ele as suportou em grande número porque sabia o que estava procurando. Sua inspiração extraordinária não o deixou encontrar consolo em nada além de Deus, e ele a descreve maravilhosamente em seu poema em prosa, “Lamento de Adão.” 
  
Assim como a oração gera oração, o luto espiritual gera mais luto, e chega o momento, diz São João Clímaco, quando o homem carrega esse luto dentro de si mesmo, sempre e em todo lugar. Sempre que ele se encontrar sozinho, ele o descarregará imediatamente, e suas lágrimas regenerarão completamente sua pessoa. Ele se torna fogo em seu amor a Deus; o ódio que ele sente por si mesmo redobra seu luto, e o Senhor vem restaurá-lo totalmente com a Graça que flui de Sua cruz. 
  
Permita-me concluir com uma passagem do “Lamento de Adão”, que é de fato a maravilhosa lamentação do próprio São Silouan: 
  
Adão chorou: O deserto não pode me agradar; nem as montanhas altas, nem o prado nem a floresta, nem o canto dos pássaros. Não tenho prazer em nada. Minha alma sofre com grande tristeza: eu ofendi a Deus. E se o Senhor me colocasse no Paraíso de novo, também eu choraria e lamentaria- Oh, por que entristeci meu amado Deus? . . . Por que minha alma não O vê? O que O impede de habitar em mim? Isso O impede: a humildade e o amor de Cristo pelos meus inimigos não estão em mim? '. . . . Adão perdeu o paraíso terrestre e o procurou chorando. Mas o Senhor, por meio de Seu amor, na Cruz, deu a Adão outro paraíso, mais justo que o antigo - um paraíso celeste, onde brilha a Luz da Santíssima Trindade. O que devemos render ao Senhor por Seu amor por nós? 7 







Perguntas e respostas 
  
Pergunta 1: Você falou anteriormente sobre a transmutação da energia psicológica em contemplação espiritual e deu o exemplo na irmandade monástica de uma palavra dura sendo dita a alguém. Gostaria de saber se você poderia refletir mais sobre isso e nos ajudar a entender como nós, sacerdotes do mundo, lidando com a multidão de pessoas pelas quais devemos interceder a Deus, podemos fazer o mesmo em algo tão mundano quanto uma reunião com os adolescentes do conselho ou interagindo com nossos paroquianos. 
  
Resposta 1: Não devemos viver nossos estados psicológicos por conta própria, devemos compartilhá-los com o próprio Deus, com nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. O apóstolo nos dá essa liminar quando diz: ‘Se alguém estiver feliz, deixe-o cantar. Se alguém estiver triste, deixe-o orar'(Tg. 5:13). Ou seja, podemos transformar uma energia psicológica em espiritual - não apenas a triste, mas também a feliz. Se somos alegres, não vivemos nossa felicidade apenas no nível humano, mas elevamos nossas mentes a Deus e glorificamos nosso grande Benfeitor, dando graças a Ele. Se estamos cheios de admiração, novamente louvamos o onisciente Criador. O tempo todo nos referimos a Ele, e essa atitude é muito útil, especialmente quando recebemos os 'golpes duros' da vida, porque em momentos críticos, encontraremos uma saída e Deus nos consolará. Muitas vezes, oramos e Deus não nos escuta, e a tentação ou dificuldade permanece. Mas acontece uma coisa que é ainda mais preciosa do que ser libertado da tentação: recebemos a força para nos elevar acima dela. Esse é um milagre ainda maior! Todos nós, finalmente, chegaremos ao limiar da morte, e há algo absolutamente necessário nisso, porque então teremos que fazer a nossa escolha da maneira mais definitiva. Se, quando enfrentamos a morte, permanecemos apegados a Cristo e o seguimos, confiando em Sua palavra, isso significa que nossa fé é mais forte do que a morte que nos ameaça, portanto, nossa fé vence a morte. "Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé", diz São João, o Divino (1 João 5: 4). Eventualmente, encontraremos coisas que nos provarão e nos testarão, e tomaremos uma decisão que será imutável por toda a eternidade. Essa foi a reação dos bons anjos na eternidade, quando eles disseram: 'Fiquemos bem. Vamos ficar com medo. 'Eles permaneceram apegados a Deus, enquanto os maus anjos caíam. Tudo foi decidido de uma vez por todas, porque esse evento ocorreu na eternidade. Considerando que, para nós, no tempo, tudo é relativo e só somos verdadeiramente testados quando enfrentamos a morte, e se nesse momento nossa determinação de seguir o Senhor é inabalável, nossa resolução entra na eternidade e recebemos 'um reino que não pode ser abalado. ', como diz a Epístola aos Hebreus (Hb 12:28). 
  
Pergunta 2: Anteriormente, você citou uma passagem dos escritos do Ancião Sofrônio, onde ele disse que, após um período de arrependimento, reconheceu a graça de Deus sendo dada a ele e o alívio resultante disso. Como ele reconheceu isso e como podemos reconhecê-lo em nosso arrependimento ou quando tentamos arrepender-nos? E se não sentimos como se tivéssemos recebido esse alívio, isso é um sinal de que nosso arrependimento não é sincero? 
  
Resposta 2: Sim, claro. Por exemplo, ficamos mais fortes em resistir às tentações. Se nossa resistência é fortalecida contra o pecado, isso é um sinal de que encontramos graça. Se acharmos mais fácil nos humilharmos diante de nosso irmão, dar o primeiro lugar ao outro e nos contentar com um lugar mais humilde para nós mesmos, novamente isso é um sinal de que encontramos graça. Se pudermos orar com mais facilidade, mais pura e devotamente, isso é novamente uma boa indicação, que nosso estado não é apenas psicológico, mas que há graça misturada a ele. Existem também maneiras práticas de testar a nós mesmos. Quando São João Clímaco deseja nos dar certos critérios para verificar nosso progresso, ele não diz que quem mantém vigília por três horas está no primeiro degrau da escada da ascensão espiritual, e quem mantém vigília por cinco horas está no segundo degrau, e assim por diante. Não, seu critério infalível é a nossa reação à reprovação ou correção. Ele diz que, se nos forçarmos a não responder quando formos advertidos, estaremos no primeiro degrau da escada para a perfeição. Não apenas se ficarmos quietos, não reagindo mal, mas também se percebermos que estamos errados e nos culparmos por nosso erro, então estaremos no segundo degrau. Se damos graças a Deus por termos sido repreendidos por nosso benefício e nossa correção, estamos no terceiro degrau. Se oramos por quem nos prejudicou e o consideramos nosso benfeitor, então estamos um degrau mais alto na escada da perfeição. Além disso, ele diz que quando alguém faz uma observação e nós respondemos de volta, odiamos nossa própria alma. Não devemos ter a última palavra. Nossa última palavra deve ser "amém", ou "que seja abençoado", mas não devemos "complementá-la" com nossa própria observação. 

Pergunta 3: Eu tenho lutado ao ouvir as conversas com esse conceito de "recuperar nossos sentidos". Vivemos em uma sociedade que parece próspera, que no sentido mundano é rica além como nenhuma outra na história, mas, de fato, é totalmente louca. Quando ouvimos suas palavras, começamos a ver a loucura ao nosso redor, e o que estou lutando é com uma tensão aparente entre a bondade da criação que ainda existe, apesar de sua queda, e nosso apego às coisas criadas. Suas palavras sobre arrependimento e o que temos que fazer em termos de nosso trabalho interno são difíceis de 'vender' para aqueles que vivem no mundo. Gostaria de saber se você pode nos dar algumas palavras de incentivo, em termos de como apresentar o Evangelho ao mundo ao nosso redor, de uma maneira que possa ajudar as pessoas a ver que isso é um realinhamento de prioridades, para que possamos mudar de uma visão de mundo temporal para uma visão de mundo eterna e podermos entrar no reino. 
  
Resposta 3: Você fez a pergunta e deu a resposta no final também! É importante ensinar as pessoas a definir corretamente suas prioridades. No Evangelho, lemos que todo escriba iniciado no reino retira do seu tesouro coisas antigas e novas (Mt 13:52). Se somos verdadeiros escribas iniciados no reino de nosso Senhor, conheceremos nossas prioridades e poderemos fazer todas as coisas funcionarem com o objetivo principal de nossa vida: servir a Deus. Podemos viver neste mundo, mas não devemos ser deste mundo; nossa mente está voltada para as coisas no alto. Usamos este mundo e somos gratos a Deus, mas nosso coração não está neste mundo, porque 'nossa vida está escondida com Cristo em Deus', como diz São Paulo (Col. 3: 3). Devemos usar tudo neste mundo com medida e discrição, sem nos escravizar a nada, porque nosso coração está voltado para as coisas eternas e invisíveis, que são mais reais do que as que são vistas. Me perdoe. 
  
NOTAS 
  
1.  A Ascensão de Isaías 8:21, um documento judaico-cristão do século II que descreve a jornada do Profeta pelos sete céus após seu martírio. Veja The Letters of Ammonas, trad. Derwas J. Chitty, revisado e apresentado por Sebastian Brock (Fairacres, Oxford: SLG Press, Convento da Encarnação, 1995), pp. 13–14. 
  
2. We Shall See Him as He Is , op. cit., p. 152 
  
3. Ibid., P. 59 
  
4. Ver cap. 4) 
  
5. Evergetinos, vol. 2, 32 (Constantinopla, 1861), p. 101) 
  
6. Observe que, onde KJV traduz 'não gostava de reter Deus', o texto grego diz 'ouk edokimasan ton Theon', 'não experimentou com Deus'. 
  
7. São Silouan, op. cit., pp. 450–456. 


tradução: Hipodiácono Paísios


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